Rede de Transportes

Sustentabilidade: Micromobilidade pode ser a resposta, mas falta(va) segurança e organização?

Quase 80% dos utilizadores Whoosh utiliza as trotinetes nas suas rotinas diárias

Com a mobilidade urbana a ter ganhado novas formas de locomoção sobretudo para o last-mile, nomeadamente trotinetes e bicicletas eletrificadas, a MOB Magazine foi entender o que se está a passar no interior das cidades. Desde limitações de velocidade, como em Paris, a testes de alcoolémia, na aplicação da Bolt, há um elevado número de medidas a serem tomadas para equilibrar a presença deste tipo de opções de mobilidade no tecido urbano. Viaje connosco para ver em que estado estamos em Portugal.

O reforço dos meios de mobilidade no interior das cidades é muitas vezes a aposta central das autoridades locais. Porém, para lá da oferta pública de transportes, durante os últimos anos surgiram diversos operadores privados a introduzirem novos meios de mobilidade suave, que têm tanto de vantajoso como de pernicioso.
Sem regulamentos apertados face à novidade dos serviços oferecidos, mas hoje com uma oferta mais estruturada e organizada, mas também com o fortalecimento na rede de vias para estes meios de mobilidade, em algumas cidades portugueses, bicicletas elétricas e trotinetes vão partilhando o espaço público com os tradicionais meios de mobilidade.
Num momento em que é preciso apertar o cinto das emissões no centro das grandes urbes, estes meios chegaram com um misto de lufada de ar fresco e de espanto perante a desregulação da atividade, tendo apenas nos últimos meses sido dados passos conclusivos para a saudável imposição de regras que permite agora uma mais tangível integração na própria dinâmica das cidades.
Com um regime legal ampliado para incluir as convencionadas trotinetes desde janeiro de 2021, o Código da Estrada e alguma legislação complementar foram revistos, de forma a ‘legalizar’ este tipo de atividade com o intuito de incrementar a segurança rodoviária. Assim, a partir dessa data, a alteração do regime de equiparação a velocípedes, permitiu serem estabelecidos requisitos técnicos no que concerne a trotinetas com motor, veio trazer maior esclarecimento e melhorar, teoricamente, a regulação do mercado.
Porém, na prática, estabelece a lei que, “atendendo à proliferação de veículos equiparados a velocípedes que podem circular em pistas de velocípedes e em pistas mistas de velocípedes e peões, e à sua extrema perigosidade na partilha de espaço, restringe-se a equiparação a velocípedes apenas a veículos com potência máxima contínua de 0,25 kW [ou se se preferir, 250 Watts, n.d.r.] e que não atinjam mais de 25 km/h de velocidade em patamar.”
Desta forma, esclareceu-se que passou, por isso, a ser determinante a utilização de ciclovias ou a partilha da via mais à direita com os restantes veículos motorizados, explicando-se também que a utilização deste tipo de equipamentos não obrigava, apesar de se aconselhar, a utilização de capacete protetor, esclarecendo-se ainda que a utilização deste tipo de veículos motorizados nos passeios passaria a ser estritamente proibida, salvo para crianças com menos de 10 anos.

Mas o que nos dizem os dados? Sinistralidade aumentou a ritmo da oferta?

Para se ter uma ideia, a empresa Dekra, de origem alemã, que anualmente compila dados sobre sinistralidade rodoviária a nível europeu, esclarecia, de forma concreta, em 2020, a perigosidade da multiplicação destes meios. Na Alemanha, onde desde meados de 2019 passou a ser permitida a utilização de trotinetes por cidadãos sem carta, o volume de acidentes cresceu em base exponencial.
Como explica no seu sítio online, “no primeiro trimestre de 2020, de acordo com os dados do Serviço Federal de Estatística, ocorreram 251 acidentes com pequenos veículos elétricos. Nestes, um utilizador de trotinete elétrica perdeu a vida, 39 ficaram gravemente feridos e 182 sofreram ferimentos ligeiros.” Os números mostravam-se assustadores e replicavam uma realidade que era partilhada por outros estados-membro da União Europeia.
No mesmo relatório, adiantava-se ainda que “um estudo da University of California, em São Francisco, nos Estados Unidos, o número de ferimentos relacionados com trotinetes entre 2014 e 2018 aumentou 222%, para mais de 39 000. O número de hospitalizações neste período subiu até 365%, para 3300. As pessoas com idades entre 18 e 34 anos foram as principais afetadas neste contexto”, dados que, em 2020, permitiam olhar para um mercado mais maduro neste tipo de oferta e perspetivar a necessidade de medidas deste lado do Atlântico.
Face ao crescimento do problema, Paris não perdeu tempo. Com três operadores instalados na capital francesa, Dott, Lime e Tier, fruto de um crescente número de acidentes com peões, a câmara da capital deu ordem aos operadores para limitarem a velocidade dos veículos a 10 km/h. Dados da AFP mostravam que estes veículos tinham estado envolvidos em 298 acidentes só em 2021, de onde resultaram 329 feridos e dois mortos. Segundo um artigo da revista Visão, que noticiava este facto, o caso mais dramático aconteceu em junho de 2021, quando duas mulheres atropelaram uma terceira nas margens do Sena à noite e a deixaram no chão, acabando a transeunte por falecer dois dias mais tarde no hospital.
Assim, em setembro, a cidade de Paris pediu a cada área administrativa da cidade que identificasse e estabelecesse zonas onde o limite de velocidade devesse ser aplicado, sendo que deste estudo resultou uma lista com 700 localizações, sendo que os três operadores acederam, novamente, a impor mais esta limitação. Com licenças para operar até 2023 na Cidade das Luzes, as empresas defenderam que, para fazer eco destas limitações, iriam usar dados de geolocalização em tempo real como forma de impor os limites sugeridos.

Um estudo da University of California, em São Francisco, nos Estados Unidos adianta que, o número de ferimentos relacionados com trotinetes entre 2014 e 2018 aumentou 222%, para mais de 39 000. O número de hospitalizações neste período subiu até 365%, para 3300

 

Seguros ‘fechados’ até 2023. Testes de alcoolémia asseguram ‘segurança’

Com o número de acidentes a disparar, fruto também de uma massificação da utilização por parte dos cidadãos, os seguros assumem-se agora como uma ferramenta essencial para a boa utilização deste tipo de alternativas de mobilidade. Em dezembro de 2021, a Allianz Partners, subsidiária de assistência do grupo Allianz, confirmava ter prolongado a sua colaboração com a Bolt para uma nova parceria de três anos.
No anúncio público, o responsável desta app de mobilidade europeia e a seguradora estabeleceram em conjunto o programa que “fornece automaticamente a todos os utilizadores de trotinetes Bolt dois tipos de seguros incorporados na taxa de utilização”, a saber, o seguro de Acidentes Pessoais e seguro de Responsabilidade Civil (RC) Geral.
Fruto desta parceria, os utilizadores, na eventualidade de um acidente, ficam protegidos contra potenciais ferimentos graves (Seguro de Acidentes Pessoais), assim como pelos danos que possam causar a terceiros (Responsabilidade Geral). “Na Allianz procuramos ser vanguardistas na promoção de um ambiente seguro para a mobilidade urbana do futuro e estamos extremamente orgulhosos por poder reforçar e alargar a nossa parceria com uma das empresas de mobilidade que mais rapidamente cresceu na Europa”, afirmava Michael Maicher, Head of New Mobility for Global Strategic Partnerships na Allianz Partners, em comunicado.
Com programas lançados em Portugal, Noruega e Suécia, a Bolt planeava expandir esta ‘oferta seguradora’ à totalidade dos 26 mercados europeus onde opera. “Na Bolt estamos empenhados em garantir que as nossas trotinetes são o mais seguras possível e, atualmente, estamos a trabalhar em várias funcionalidades que contribuem tanto para a segurança dos utilizadores, como para a dos restantes ocupantes da via pública. No entanto, e infelizmente, os acidentes acontecem e é aqui que a parceria com a Allianz Partners nos ajuda a garantir uma rede de segurança total para os nossos utilizadores“, complementou Dmitri Pivovarov, Director da micromobilidade da Bolt.
Porém, esta é apenas uma parte do problema. Com 21 detenções relacionadas com a utilização de trotinetes por cidadãos com taxa de alcoolémia acima do permitido no ano de 2021, a PSP, em resposta enviada à Lusa, revelou que os condutores de trotinetas têm sido alvo “tanto de ações de fiscalização, como de sensibilização” por parte das autoridades, acompanhando a tendência de aumento da utilização de trotinetas e as consequentes questões relativas à segurança rodoviária. Mas este é um problema que tem vindo a crescer.
Na mesma peça da Lusa, explicava-se ainda que, no contexto de infrações relacionadas com a condução de trotinetes sob a influência de álcool, a PSP registou oito contraordenações em 2017, quatro em 2018, 21 em 2019, 10 em 2020 e 14 entre janeiro e outubro 2021, sendo que a Bolt, introduziu, por isso, um teste próprio para evitar o disseminar destas situações.
A nova valência, incorporada na aplicação, foi apresentada em 26 de novembro último, em Lisboa e, de acordo com o responsável da Micromobilidade da Bolt em Portugal, Santiago Páramo, insere-se no objetivo de “promover a segurança na circulação das trotinetes”. “Trata-se de seguir a nossa política de prevenção em segurança que estará a partir de hoje disponível nas seis cidades portuguesas onde a Bolt se encontra”, reforçou Santiago Páramo, em declarações à Lusa.
Segundo o responsável, esta funcionalidade passou desde essa data a estar operacional entre as 00h00 e as 06h00, consubstanciando-se em um “teste de reação em que será medido o tempo em que se responde a um ‘jogo’ para avaliar se a pessoa está em condições para conduzir em segurança”.
Assim, na aplicação do telemóvel, após o utilizador escolher a viagem de trotinete, este tem de cumprir um jogo (com a imagem de um capacete) que irá aparecer no ecrã, sendo pedido que se toque na imagem de forma a medir o tempo de reação entre o surgimento do capacete e o ato de tocar no mesmo. Se a reação for lenta, a aplicação recomenda a chamada de um TVDE e bloqueia a utilização da trotinete, mas o utilizador pode repetir o teste até ‘passar’ à fase de utilização.

Entre todas as categorias de veículos, é de salientar o crescimento de 20,0% dos velocípedes como veículos intervenientes em acidentes, não obstante o seu peso de apenas 5,9% no número total. Esta é a categoria com maior aumento e praticamente o dobro do valor da categoria seguinte. Registaram-se 2 547 acidentes com velocípedes até Novembro 2021 – dados DECO PROTESTE

 

6 questões a Alexandre Marvão, Coordenador da Área da Mobilidade da DECO PROTESTE

Durante os últimos anos assistimos a uma entrada em força de opções de micromobilidade. Porém, parecia haver dúvidas em relação ao regime legal a ser aplicado. Estamos hoje noutro ponto desta temática?
O legislador continua a demorar muito tempo a adaptar-se às novidades. Os sistemas de micromobilidade continuam a estar um pouco à margem da legislação. Trotinetes com limites de potência limitados, condução de veículos por menores, entre outros assuntos essenciais para a convivência entre todos os meios de mobilidade e em particular a promoção de uma mobilidade ativa, continuam a ser necessários.

A criação de ciclovias em Lisboa, em algumas das principais artérias da cidade, foi motivo de amplas críticas, mas também elogio. Faz sentido esta aposta?
Faz sentido e é desejável a aposta numa rede de ciclovias interligada e segura. O que vimos foi a criação de ciclovias avulso de forma indiscriminada e mal projetada em alguns casos, criando situações de risco de segurança e de bloqueio de tráfego que não são de todo desejáveis para a promoção da micromobilidade.

As ciclovias delimitadas são a melhor forma de prevenir acidentes graves entre carros e scooters elétricas/bicicletas?
As ciclovias delimitadas são a melhor solução ao nível de segurança para a circulação de bicicletas e trotinetes, mas nem sempre o desenho urbano possibilita essa execução, seja por falta de espaço ou harmonia urbana. A construção de ciclovias implica um estudo preliminar das alternativas e a adoção das soluções que melhor se aplicam ao espaço disponível e à tipificação da utilização por parte dos ciclistas, que essa via irá ter. Só com toda essa informação se podem construir as soluções mais adaptadas e que melhor servem o interesse de todos.

Apesar de um regime legal mais claro, continuam a ver-se algumas infrações em termos de utilização deste tipo de veículos, por exemplo, fora de estrada. Faz sentido esclarecer mais os cidadãos/utilizadores?
Como é óbvio, pela observação do comportamento dos utilizadores de velocípedes, há uma falta de informação e ou incumprimento voluntário das regras de circulação de velocípedes e dos riscos associados. Por exemplo, a circulação nos passeios por parte dos condutores de velocípedes maiores de 10 anos, desrespeito pelas regras de transito na via pública, entre outras. Por isso, é claro que existe uma necessidade de campanhas de sensibilização das regras de condução e comportamento para a mobilidade. Neste sentido a DECO PROTESTE lançou um curso online sobre mobilidade júnior onde se abordar os diversos temas da mobilidade na perspetiva de dar a competências aos jovens para a utilização de todos os meios de forma segura, disponível em www.mobilidadejunior.pt

Sente que um regime legal mais restritivo pode dificultar o crescimento deste tipo de mobilidade (que na prática é mais amigo do ambiente)? Muitos utilizadores reclamam das más vias públicas (estradas) para utilização deste tipo de veículos…
As restrições desincentivam sempre a utilização dos meios alternativos de mobilidade. Condições de aquisição de equipamentos, uma infraestrutura que promova a utilização em segurança de velocípedes, são fatores indispensáveis para o crescimento do número de utilizadores de micromobilidade. Mas, como é claro, não são unicamente as condições diretas que influenciam. A micromobilidade aplica-se predominantemente para curtas distâncias, o chamado last mile, e para isso é preciso garantir que conseguimos reduzir e encurtar as necessidades de mobilidade. Neste campo, as alterações são mais profundas e difíceis de implementar, focando-se em alterações do desenho e planeamento urbanístico, essencialmente, com o fim da criação de zonas urbanas monofuncionais e a obrigação de deslocações longas para as atividades diárias e regulares. Para incentivar o aumento do número de utilizadores é preciso criar as condições para uma utilização segura e confortável. Só assim conseguiremos massificar a micromobilidade.

Por fim, uma questão paralela. Uma das principais reclamações relativamente à disseminação deste tipo de veículo é a desorganização que causa no mapa urbano. Pensa que zonas de estacionamento obrigatório, como já testadas, facilitaram neste prisma?
É verdade que os velocípedes, em particular em modo de partilha, trouxeram consigo um novo problema de organização e risco urbano. As trotinetes deixadas em qualquer local do passeio e muitas vezes caídas, apresentam-se como um risco à circulação dos peões. Nesse sentido a criação de zonas de estacionamento dedicado são a única solução. Mas para que se mantenha a perspetiva de simplicidade e proximidade na utilização dos veículos partilhados, essencial para o sucesso deste tipo de mobilidade, os estacionamentos têm que ser em grande quantidade e com grande dispersão, retirando possivelmente espaço de estacionamento automóvel, mas beneficiando grandemente a utilização destes meios.

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