Para o especialista em planificação urbana e sustentabilidade Salvador Clarós, “a transformação das cidades é uma das mudanças mais poderosas que veremos nas próximas décadas”. E se em Barcelona as Supermanzanas vão reorganizando a malha urbana, reduzindo o tráfego e melhorando a qualidade de vida, o futuro, na perspetiva deste defensor do modelo que o bairro Poblenou ensaiou de forma pioneira, passa por reduzir drasticamente as emissões e o consumo de energia e por reestruturar a utilização dos espaços. Em todas as cidades.
Mais de metade da população mundial vive atualmente em cidades. Até 2050, este número deverá disparar para os 70%, de acordo com as estimativas da ONU. Face aos problemas que as cidades vivem, é urgente adaptar os modelos de mobilidade urbana às exigências das alterações climáticas e dos grandes desafios globais. Humanizando as zonas urbanas.
Neste Especial, viajamos dos bairros do centro de Paris, onde o conceito de “cidade dos 15 minutos” é já uma realidade, fazendo da proximidade o big bang da qualidade urbana, às Supermanzanas de Barcelona, pioneiras em trocar o trânsito automóvel pela revitalização do espaço público, com zonas verdes e de lazer.
E abrimos caminho a um futuro em Portugal onde as cidades possam, um dia, ser vivenciadas à escala de valores como proximidade, vizinhança e colaboração.
Ruas para carros e ruas para pessoas
Inaugurada em setembro de 2016, a Supermanzana de Poblenou é a primeira de uma série de vinte “pacificações” (como as denomina o município) previstas em Barcelona e que, no essencial, proíbem a circulação automóvel (exceto para moradores, e a 10 km/hora) em blocos de quarteirões e reaproveitam os espaços para melhorar a qualidade da vida urbana.
Assente num princípio básico – “alcançar a sustentabilidade urbana intervindo na matriz de múltiplas variáveis que incluem estradas, qualidade do ar, ruído, biodiversidade, temperatura e funções ecológicas” –, o modelo das Supermanzanas é criado pela Agência de Ecologia Urbana de Barcelona, sob a direção do ecólogo urbano barcelonês Salvador Rueda.
Como explica, em entrevista à MOB MAGAZINE, Salvador Clarós, vice-presidente da Asociación de Vecinos y Vecinas de Poblenou (AVVP), “trata-se de reorganizar a malha urbana que forma as vias de circulação da cidade, reduzindo o tráfego e melhorando os diversos parâmetros para uma maior qualidade de vida e melhor funcionalidade do sistema viário”.
Para tanto, é necessário hierarquizar este sistema, “quebrando a isotropia da malha ortogonal do Ensanche barcelonês” (distrito projetado em forma quadricular que ocupa a zona central de Barcelona). O objetivo é que “nem todas as ruas tenham a mesma funcionalidade, definindo as vias primárias para tráfego e outras vias com preponderância para circuitos pedonais e mobilidade não mecânica”. Desta forma, explica Salvador Clarós, “define-se uma estrutura de blocos 3×3 ou 4×4 que é replicada em toda a malha do Ensanche. As arestas destes quadrados são formadas pelas ruas com trânsito de passagem e as ruas no interior da malha perdem a função de tráfego (apenas admitem tráfego local) para ganhar utilizações pelos cidadãos em espaço livre”.
Como comenta o especialista em planificação urbana e sustentabilidade, na realidade, “o resultado final do modelo propõe uma requalificação dos terrenos destinados a estradas em espaços verdes urbanos”. A consequência “é a redução do tráfego rodoviário, priorizando os corredores de transporte público, com as consequentes melhorias na qualidade de vida urbana”, conclui.
O bairro Poblenou está estruturado da mesma forma que o Ensanche, numa quadricula ortogonal e, simultaneamente, ocupa uma posição excêntrica em relação ao centro urbano e tem uma densidade de tráfego muito menor. Este é o motivo pelo qual a primeira Supermanzana foi ali testada. Nas palavras de Salvador Clarós, “era como fazer um ensaio assumindo riscos mínimos”.
No entanto, nem tudo foram facilidades na conversão do projeto à prática. A iniciativa pioneira gerou um movimento de oposição por parte de um grupo de cidadãos, “promovido em grande parte por partidos políticos de oposição na Câmara Municipal e por alguns lobbys da cidade, como o RACC (Real Automóvil Club de Catalunya)”, acusa o responsável. Já o tecido associativo de bairros, e nomeadamente a AVVP, sempre defendeu o modelo das Supermanzanas, produzindo-se então “um forte debate, incluindo manifestações a favor e contra” a implementação do projeto em Barcelona.
Considerando que “as mudanças de paradigma tendem sempre a provocar resistência”, Salvador Clarós explica que o modelo urbano dedicado ao automóvel ainda não havia sido questionado, em Barcelona, onde “a cultura automobilística estava e ainda está profundamente enraizada entre a população”.
Poblenou, o modelo das mudanças funcionais
Certo é que “a ortogonalidade única da rede rodoviária de Barcelona facilita a introdução do modelo Supermanzanas”, e fatores como a alta densidade residencial, a falta de espaços verdes, o ruído e a poluição do ar “jogaram a favor da mudança”, permitindo ir além do projeto-piloto: “o ensaio no bairro de Poblenou serviu para constatar algumas ineficiências na abordagem inicial e afinar o projeto das Supermanzanas, que posteriormente foi replicado no bairro de Sant Antoni”, conclui Salvador Clarós.
Inicialmente, o teste foi realizado com uma intervenção “tática”, ou seja, simulando as mudanças no terreno com tinta e elementos ou artefactos provisórios, como vasos gigantes, jogos infantis, mesas e outro mobiliário urbano disposto no espaço público.
Os objetivos de alcançar uma mobilidade sustentável, melhorar o meio ambiente, proteger a biodiversidade e reduzir o consumo de energia fazem parte “da mudança de paradigma global que a Europa e o mundo enfrentam”, comenta, e, neste contexto, pode afirmar-se que o modelo pioneiro das Supermanzanas já foi implementado em outras cidades, ainda que com formatos distintos.
O modelo das Supermanzanas propõe a requalificação dos terrenos destinados a estradas em espaços verdes urbanos
A “cidade dos 15 minutos”, por exemplo, é um modelo que, embora esteja focado nos princípios da proximidade e da acessibilidade, busca a mesma mudança rumo à sustentabilidade urbana que o modelo das Supermanzanas persegue.
Defendendo que “a transformação das cidades é uma das mudanças mais poderosas que veremos nas próximas décadas”, Salvador Clarós acredita que “a redução drástica de emissões e consumo de energia, a eletrificação e a restruturação da utilização dos espaços nas cidades produzirão mudanças muito profundas, que ainda não vimos”. A tecnologia digital, diz, “é um dos principais impulsionadores dessas mudanças”.
Perspetivando que, num futuro próximo, poderemos assistir “a mudanças funcionais nas cidades”, como a transformação do uso residencial da habitação em uso para atividade económica ou a instalação de escritórios, gabinetes, oficinas e pequena logística nas proximidades onde as pessoas vivem, para evitar deslocações forçadas por atividade laboral, o especialista sugere que a proliferação de edifícios de coworking indica que as cidades procuram enriquecer os seus usos, fugindo da monocultura residencial”.
Poblenou “é um exemplo desse modelo de cidade complexo, denso, diversificado e funcionalmente rico”, conclui. Um modelo “que aumenta notavelmente a qualidade de vida, que é como Barcelona é reconhecida”.
Segundo o vice-presidente da AVVP, que sublinha o “reconhecimento do valor da implementação desse tipo de estratégia” por parte de inúmeros alunos, professores, investigadores e jornalistas de vários países que se deslocam a Barcelona e contactam a AVVP para conhecer as Supermanzanas, no plano urbanístico para 2022 da capital catalã, que transforma as áreas industriais de Poblenou em novos terrenos urbanos para atividade económica, uma parcela do terreno já está a ser reclassificada para outros usos urbanos, como eixos verdes.
A Câmara de Barcelona anunciou, entretanto, que depois das intervenções em Poblenou, Horta e Sant Antoni, as “Supermanzanas” dão um salto de escala e de ritmo, criando uma rede de eixos verdes e praças, onde é o peão que tem a prioridade.
“A tecnologia digital é um dos principais impulsionadores das mudanças nas cidades”
Salvador Clarós, AVVP
De Melbourne a Lisboa
Seguindo o desígnio destes projetos pioneiros, um pouco por todo mundo testam-se conceitos e experimentam-se modelos de uma nova sustentabilidade urbana que visa melhorar a qualidade de vida nas cidades, ao mesmo tempo que se combatem ativamente os efeitos das alterações climáticas.
Na Europa, para além do reconhecido êxito do projeto de Carlos Moreno em Paris e das superfamosas manzanas de Barcelona, Copenhaga (nomeada pela Unesco como Capital Mundial da Arquitetura para 2023) é um exemplo conhecido de vitalidade urbana centrada numa rede de ciclovias que impulsionam vivências numa lógica de proximidade. Mas não é o único: em julho de 2020, o C40 Cities Climate Leadership Group destacou os planos urbanos implementados em Milão, Madrid e Edimburgo para dar resposta à restruturação urbana através de “cidades dos 15 minutos”.
Seattle foi também referida pela entidade, juntando-se a várias outras cidades americanas que estão a explorar métodos semelhantes nos seus planos de urbanismo. Miami ocupa o primeiro lugar do ranking das 25 melhores “cidades dos 15 minutos” futuras, nos Estados Unidos (da analista em mobilidade moveBuddha), seguida de San Francisco e Pittsburgh, nas segunda e terceira posições.
Bogotá, na Colômbia, implementou 84 quilómetros de ciclovias para incentivar o distanciamento social durante a pandemia de Covid-19, e tem hoje a maior rede de ciclovias do mundo onde as bicicletas têm o controle primário das ruas.
Em Xangai, o Plano Diretor de 2016 exigiu “círculos de vida comunitários de 15 minutos”, através dos quais os moradores podem realizar todas as suas atividades diárias dentro de um trajeto de 15 minutos, a pé ou de bicicleta.
E na Austrália, Melbourne criou a sua própria versão das urbes de proximidade, com bairros de 20 minutos, isto é, locais onde todas as necessidades essenciais podem também ser satisfeitas com uma caminhada de 20 minutos.
A crise climática e a pandemia global de Covidd-19 estão a acelerar a consideração e implementação destas novas formas de viver a cidade e, em Portugal, especialistas em assuntos urbanos perspetivam que o futuro pós-pandemia do urbanismo poderá integrar o conceito de “cidade dos 15 minutos”.
Defendendo, há cerca de um ano, que a pandemia “veio colocar uma nova camada de questões às pressões e às problemáticas que já vinham de trás”, o professor da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, João Seixas, acredita que poderá “haver uma revalorização de uma proximidade com muita diversidade humana”. Em declarações à agência Lusa, o especialista em Geografia Humana, que integra a equipa de cinco especialistas que apresentou a sua visão para “uma nova agenda urbana” em Portugal, durante a consulta pública do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), explica que, face à “possibilidade de usos mais diversos à pequena escala em cada bairro”, o urbanismo “deixa de ser gerido por critérios meramente monofuncionais”.
O parecer submetido durante a consulta pública inclui propostas que incidem nas escalas locais e incluem conceitos como os de proximidade, vizinhança e colaboração, aplicados àquilo que são as necessidades e particularidades de cada território: a implementação destas propostas requer “interpretar, de forma adequada, os múltiplos contextos urbanos e sociais existentes em Portugal” e envolver as comunidades locais na projeção destes modelos urbanos.
Até à data de fecho de esta edição não foi possível obter qualquer depoimento por parte da equipa que defende esta “nova agenda urbana para Portugal”, mas, na visão dos especialistas, se se canalizarem os investimentos sustentados no PRR por lógicas de carácter urbano, será possível desenvolver respostas mais transversais, coesas e ecológicas, através de investimentos que sustenham “novas perspetivas de habitat e de vida urbana, de criação de valor, de reforço das comunidades, nos mais diversos territórios urbanos e periurbanos do país, bem como novas conceptualizações, instrumentos e práticas de planeamento urbano e ordenamento do território”. No pressuposto de que a “gestão inteligente das cidades se desenvolve de forma pró-ativa, com um urbanismo ecológico e humanizado”, como cita a revista Smart Cities.
Para os autores, aplicar esta abordagem em Portugal, através do PRR, teria “um impacto profundo” que seria sentido na sociedade, economia, ecologia e territórios”. Resta saber quando deixaremos de viver numa parte da cidade e trabalhar noutra, e passaremos a integrar bairros com uma dimensão mais humana.