Smart Cities

“Vamos caminhar rumo à mobilidade escolhida, aquela em que nos movemos porque queremos”

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Numa conversa à distância entre Paris e Lisboa, o professor Carlos Moreno, “pai” do conceito de proximidade que propõe deslocar as urbes “da mobilidade forçada para a mobilidade escolhida” explica o significado redobrado da “cidade dos 15 minutos” no atual contexto de pandemia e guerra. E preconiza que “no centro das transformações está uma logística mais distribuída, que deve, sobretudo, flexibilizar serviços”

Em entrevista à MOB MAGAZINE, o professor Carlos Moreno defende “um roteiro para a transformação descentralizada da cidade”, através de serviços urbanos de proximidade. A ideia é renovar o espaço urbano e a forma de viver e trabalhar através de uma “visão multisserviços” que poupa no ambiente, dada a facilidade de deslocação a pé ou de bicicleta, e “reequilibra o acesso a habitação, trabalho, compras, saúde, educação ou cultura”, num perímetro onde tudo está à distância de 15 minutos.
Em Paris, que adotou o conceito de “cidade dos 15 minutos”, já existem uma série de iniciativas “que procuram regenerar uma cidade mais policêntrica, equilibrada e com maior integração social”, garante o diretor científico da cadeira de ETI (Empreendedorismo-Território-Inovação) da IAE Paris-Sorbonne University.

Como conseguiu convencer a presidente da Câmara de Paris a implementar o conceito de “cidade dos quinze minutos”?
A IAE Paris Sorbonne Business School tem estado em contacto direto com a presidente da Câmara de Paris, com quem mantemos um relacionamento muito espontâneo, até porque durante os seus mandatos tenho sido consultor e enviado especial na área das smart cities para o município.
Anne Hidalgo tem sido uma personalidade muito comprometida com a luta pelo clima, e logo em 2015 acolheu, no âmbito da Cop 21 – Conferência das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, a Convention des Maires pour le Climat et l’Energie, cujas cidades signatárias se comprometeram a apoiar ativamente a implementação da meta de redução de 40 % dos GEE até 2030, defendida pela UE, e concordaram em adotar uma abordagem integrada para a mitigação e adaptação às alterações climáticas e em garantir o acesso a energia segura, sustentável e acessível para todos.
Projetei esse conceito mais tarde, em 2016, propondo uma mudança nos nossos estilos de vida, se queríamos combater as mudanças climáticas para alcançarmos um horizonte neutro em carbono, em 2050. O que implica negociar uma organização da vida urbana, dando mais relevância à proximidade e a um modo de viver muito mais moderado, descentralizado, multisserviço e com menos deslocações forçadas. Para termos uma mudança de paradigma nesta maneira de viver é preciso romper com a fragmentação urbana e com as desigualdades urbanas.
A equipa da presidente da Câmara de Paris sempre acompanhou o meu trabalho. Durante três anos a Sorbonne Business School realizou uma série de experiências na cidade e, em 2019, preparando o seu próximo mandato eleitoral, e valorizando a nossa investigação, a presidente decidiu tomar este trabalho como uma continuação lógica dos seus projetos urbanísticos, defendendo que o conceito de proximidade seria como um big bang para descentralizar a cidade, dando mais força aos serviços urbanos ao regenerar as atividades de comércio, produção, cultura e educação.
E, no final do ano, anunciou que tornaria este objetivo na espinha dorsal da sua campanha eleitoral, o que gerou muita expectativa e curiosidade. A chegada da pandemia, em março de 2020, veio obrigar-nos a viver em proximidade e abriu este conceito ao mundo, de forma viral.

E nesse contexto que mudanças concretas nos bairros conseguiram produzir? Em que fase está a implementação da “cidade dos 15 minutos” em Paris?
Anne Hidalgo venceu as eleições em junho de 2020, em plena pandemia, e uma das primeiras medidas que tomou foi abrir as escolas de bairro aos fins de semana, para dinamização de atividades entre a população vizinha. A ideia de fazer das escolas o centro do bairro integra ainda a transformação de 180 escolas e o encerramento das ruas circundantes ao tráfego rodoviário, para criar o que chamamos de ruas para crianças: gera-se menos tráfego nas proximidades e recupera-se o espaço público para atividades populares.
Também têm vindo a ser dinamizados programas de cultura viva nos bairros de proximidade, para que sejam os espetáculos a irem ter com as pessoas e não o contrário.
Por outro lado, está a combater-se a edificação em Paris através do comércio local. O comércio de proximidade está a permitir a instalação na cidade de artesãos, livrarias, locais de arte ou de venda de objetos em segunda-mão. Associada à geração de emprego, esta regeneração da economia dos bairros é fundamental.
No reequilíbrio entre habitação e trabalho, Paris está a reorganizar, por efeito de um mix de utilizações, edifícios que antes eram só habitacionais ou só para fins empresariais, através de programas que promovem a sua múltipla utilização. Os esforços de mobilidade ativa estendem-se ainda à recuperação dos espaços públicos de modo a proteger zonas pedonais e ciclovias.
Em suma, há uma série de iniciativas que procuram na sua implementação regenerar uma cidade mais policêntrica, uma cidade mais equilibrada e também com maior integração: está em curso um programa de habitação social para descentralizar este tipo de residências para fora das zonas mais carenciadas.
O orçamento participativo foi reforçado com 800 milhões de euros para desenvolver projetos locais e, em junho de 2021, a presidente da Câmara apresentou o roteiro de proximidade para a cidade. Finalmente, a 1 de dezembro de 2021, foi assinado o pacto de proximidade, que é a concretização de toda esta transformação.
De referir que um ponto chave neste processo foi a mudança no modelo de governação de Paris, graças ao efeito de proximidade, que veio reforçar poderes na gestão municipal a nível das freguesias e regenerar serviços como a polícia comunitária.
Um projeto como o da “cidade dos 15 minutos” em Paris é uma trajetória, aqui ou em qualquer parte do mundo. O que se busca é transformar a cidade através de uma visão descentralizada multisserviços. Gerando muito menos emissões de CO2, devido à proximidade que permite obter serviços a pé ou de bicicleta, mas também reequilibrando o acesso a habitação, trabalho, compras, saúde, educação, cultura.

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Numa sociedade globalizada e com as cidades sobrepovoadas, qual é a emergência de aplicar estes conceitos de mobilidade e sustentabilidade urbana?
Na Suíça o referendo sobre a “cidade dos 15 minutos” realizado em Zurique – e que foi aprovado por 70% dos cidadãos – foi considerado a votação mais importante das últimas décadas. Buenos Aires é uma grande metrópole que está a transformar-se com este conceito de proximidade. E Itália aprovou um plano de mobilidade de 200 milhões de euros para apoiar a implementação do conceito em Milão.
O ponto comum desta cidade que procuramos é o facto de a mobilidade ter de obedecer a um novo paradigma, que passa por romper com a mobilidade forçada para ir em direção à mobilidade escolhida. Hoje o principal constrangimento que temos com a mobilidade é que está dependente da distância que existe entre o local de vida e o local de trabalho e, consequentemente, normalmente associado longo tempo de transporte de ida e volta.
É por isso que a “cidade dos 15 minutos” e o seu projeto “gémeo” (o “território em meia hora”), são ferramentas de mobilidade muito importantes para combater as deslocações pendulares e recuperar o tempo útil: em vez de viajarem duas horas por dia ou mais os cidadãos podem usar parte desse tempo para socializar e gerar modelos económicos locais. É preciso reequilibrar as funções sociais.
E por isso dizemos: vamos caminhar rumo à mobilidade escolhida, aquela em que nos movemos porque queremos. A Covid-19 deu impulso a este conceito ao descentralizar o trabalho, porque as pessoas aprenderam a trabalhar de forma remota. É interessante verificar que esta mudança está a contribuir para contrariar a média de tempo de utilização de um edifício (apenas 30% a 40%), gerando novos modelos económicos de proximidade, que reutilizam muito mais e melhor o que já existe construído, para torná-lo multiuso.

“Os novos modelos económicos de proximidade reutilizam o que já existe construído, para torná-lo multiuso”

A pandemia provocou uma mudança nos modelos de negócios e veio relevar o papel essencial da logística e transportes, setor que se adaptou tecnologicamente e enfrenta agora o desafio da crise energética provocada pela guerra na Ucrânia. Como podem os serviços logísticos tornar-se mais eficientes e sustentáveis no atual contexto?
Com recurso à tecnologia, a cidade inteligente permite substituir elementos físicos que não estão presentes – trabalhando por meio de videoconferências, realizando teleconsultas com os centros de saúde, comprando online, utilizando plataformas com serviços partilhados.
Infelizmente, o que está a acontecer na Europa com o conflito russo-ucraniano é que os preços dos produtos de primeira necessidade estão a aumentar significativamente, em resultado da crise energética e consequente aumento do preço dos combustíveis. Em França já atingimos os 2 euros/litro de gasolina. Ora, esta é uma realidade que não será corrigida rapidamente, porque vivemos um período muito incerto de guerra e de mudança no modelo energético, e porque somos muito dependentes de petróleo e de gás.
Neste contexto, reforça-se ainda mais a importância de viver com o foco na proximidade. Esta guerra está a fazer crescer o sentimento de que precisamos ter muito mais proximidade para não ficarmos dependentes do que acontece longe.
E a verdade é quanto mais moderação tivermos, melhor poderemos resistir às dificuldades atuais. Temos que usar menos recursos fósseis, mas sem perder qualidade de vida. E, portanto, a proximidade torna-se uma verdadeira trincheira entre a qual nos podemos fortalecer, regenerando os poderes económicos locais e os laços sociais, reforçando a capacidade de proteger as pessoas mais vulneráveis e criando novas fontes de emprego.

Que relação devem estabelecer as smart cities com a logística, para garantir o seu objetivo de eficiência sustentável?
Na Sorbonne Business School estamos totalmente envolvidos com essa relação, pois fizemos várias propostas que refletem, precisamente, como a logística e a proximidade andam de mãos dadas.
Hoje em dia não podemos manter um modelo logístico tradicional, gerido a partir de uma centralidade da qual dependemos. Precisamos, sim, diversificar a logística, utilizando os armazéns para diferentes fins, aproveitando os espaços para distintas utilizações diurnas e noturnas, flexibilizando serviços e recorrendo a meios tecnológicos que nos permitam revigorar uma gestão logística mais distribuída.
Este é um tema bastante estudado na cadeira de ETI da Sorbonne, e está no centro das transformações que estão por vir: uma logística distribuída que deve, sobretudo, ter muito mais flexibilidade. As novas tecnologias podem ajudar a encontrar novas formas de otimizar efetivamente esta logística menos centralizada e mais em tempo real.

A que distância estamos de tornar este novo paradigma de cidades de proximidade numa realidade comum na Europa?
O que eu sempre respondo a essa pergunta é que não vale a pena ter uma meta temporal. Trata-se de fazer um roteiro para a transformação descentralizada da cidade, passando a vivê-la de uma forma mais polivalente e geradora de valor ecológico. Cada cidade tem de evoluir ao seu próprio ritmo. Não se pode fazer copy/paste.

“Cada cidade tem de evoluir ao seu próprio ritmo. Não se pode fazer copy/paste

Mas quais são os grandes desafios que obstaculizam essa evolução?
O principal obstáculo é a mudança na cultura urbana. Estamos a falar de alterar as formas de trabalhar e de viver. Quando propus este conceito, em 2016, muitas pessoas consideraram que a ideia era muito boa, mas nunca iria funcionar porque seria impossível trabalhar perto de casa. Afinal o conceito tornou-se popular a nível mundial, porque a pandemia mostrou-nos que se pode trabalhar de uma maneira diferente. Nem toda a gente pode trabalhar de forma descentralizada, mas com o trabalho remoto estamos a diminuir a saturação do espaço urbano e territorial.
Outro desafio é mudar a cultura urbana em relação ao uso do carro na cidade, promovendo a capacidade das cidades para a utilização de zonas pedonais e ciclovias pelos seus habitantes.
Há um terceiro elemento importante, que é a possibilidade de reinstalar a atividade económica em locais que não são os centros tradicionais, descentralizando atividades. Este é um objetivo para o qual se deve lidar através de uma política urbana muito ambiciosa, porque para criar essas novas centralidades há que conseguir o apoio de agentes económicos empenhados em promover essa regeneração económica.
Recentemente toda uma geração de trabalhadores (particularmente entre os 20 e os 40 anos) demonstrou a sua vontade de ter mais tempo disponível e viver as vantagens da proximidade. A “cidade dos 15 minutos” ou o “território de meia hora” não são um dogma, mas antes uma metodologia para gerar serviços locais, com uma visão descentralizada e policêntrica que permite regenerar a vida urbana das cidades.
É como uma viagem em que, precisamente, queremos mobilizar-nos menos de forma obrigada e mais por escolha própria. E atualmente reflete uma necessidade que muitas pessoas estão a manifestar devido ao contexto de pandemia.

“Precisamos diversificar a logística, flexibilizando serviços e recorrendo a meios tecnológicos que permitam revigorar uma gestão mais distribuída”

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