O número de veículos ligeiros está a crescer em quase todos os países do mundo e este aumento traz preocupações com a mobilidade urbana e com a saúde das pessoas.
Em plena pandemia de Covid-19, o número de carros em Portugal cresceu pelo oitavo ano seguido. Segundo dados do Instituto de Mobilidade e Transportes (IMT) e do Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2020, o país alcançou a marca de 5,6 milhões de veículos ligeiros registados para uma população de cerca de 10,3 milhões de pessoas. Os números colocam Portugal entre os países da Europa com a maior proporção de carros por mil habitantes: são 541 por mil. A primeira posição é ocupada por Luxemburgo, que tem 681 veículos ligeiros para cada mil pessoas.
O crescimento do número de veículos nas ruas do país traz problemas na mobilidade das cidades – como o aumento do trânsito e do tempo para deslocações – e danos ao meio ambiente e, por consequência, à saúde das pessoas, causados pela poluição. Com tantos problemas criados pelo aumento de veículos nas ruas, investigadores da área da mobilidade urbana, ativistas e lideranças políticas estão a questionar-se sobre a quem pertencem as cidades: às pessoas ou aos carros?
Em Portugal, algumas cidades já estão a implementar políticas com o objetivo de reduzir o número de veículos em circulação nas cidades. Em Lisboa e no Porto, por exemplo, há regiões onde circulam apenas os veículos autorizados para aquelas áreas. Ao implementar as Zonas de Emissões Reduzidas (ZER), a Câmara Municipal de Lisboa afirma que o objetivo é criar melhores condições de circulação e estacionamento para residentes, reduzir o tráfego de veículos, melhorar o espaço público e promover o comércio local.
Contudo, essas zonas estão implementadas em pequenas áreas das duas principais cidades do país e o processo de transformação das cidades anda a passo lento. Para ter resultados efetivos, são necessárias ações mais concretas e de expansão destas áreas, afirma Pedro Nunes, analista em energia, clima e mobilidade da ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável, ouvido pela MOB Magazine.
“As autarquias podem fazê-lo progressivamente, começando nos centros históricos e alargando-as às zonas mais periféricas, e inicialmente em períodos de tempo limitados, como aos domingos e feriados – sempre com justificadas exceções, como é o caso de pessoas com mobilidade reduzida. A adesão a iniciativas como a Semana Europeia da Mobilidade é importante do ponto de vista da pedagogia do cidadão”, explica o analista da ZERO.
Uma análise da Campanha Cidades Limpas, organizada por uma coligação de Organizações Não Governamentais (ONG) da Europa, concluiu que menos carros nas ruas pode representar aumento de venda nos comércios locais. Os dados compilados mostram que as políticas públicas urbanas que condicionam a utilização do automóvel em geral ou especificamente a dos mais poluentes – como as ZER, em Lisboa – são um contributo positivo para as vendas deste tipo de retalho.
Um exemplo é o caso de Madrid, capital de Espanha. No Natal de 2018 a despesa média no comércio local aumentou em 8,6% na área abrangida pela Zona de Baixas Emissões e de Especial Proteção (ZBEDEP), em comparação com 3,3% na cidade em geral.
Os dados mostram, ainda, que quando tais políticas são combinadas com fortes investimentos em transporte público, os resultados são ainda mais positivos. E ao contrário do que é o pensamento comum dos proprietários de lojas, os clientes que andam a pé, de bicicleta ou utilizam transportes públicos tendem a gastar mais dinheiro no comércio local do que os condutores de automóveis. Em Berna, capital da Suíça, a conversão de vagas de estacionamento de carros em estacionamento para bicicletas estimulou em 13% as despesas dos clientes no comércio.
O especialista em mobilidade e professor no Instituto Superior Técnico (IST), Filipe Moura, é outro entusiasta da redução do número de carros nas cidades. Ele cita o exemplo de Pontevedra, em Espanha, onde foram criadas condições para que a população pudesse deslocar-se sem a necessidade de utilizar automóveis.
Com uma população de pouco mais de 80 mil habitantes e com uma circulação de carros que beirava os 150 mil por dia, a Câmara Municipal de Pontevedra iniciou uma revolução na área da mobilidade urbana há cerca de 20 anos. A circulação de ligeiros foi reduzida ao estritamente necessário e há zonas em que foram privilegiados os espaços para os pedestres com o rebaixamento dos passeios. Atualmente, a velocidade máxima nas ruas da cidade espanhola é de 30 km/h e há zonas em que é de 10 km/h.
Para Filipe Moura, uma cidade sem carros, como Pontevedra, só é viável na medida em que as pessoas não precisem deste veículo para as atividades do quotidiano. “Temos que atender as necessidades básicas das pessoas. É preciso falar das questões de organização do território e de descentralização dos serviços. Temos que arranjar uma maneira de que no dia-a-dia esta ideia do urbanismo de proximidade esteja implementada”, exemplifica o professor do IST.
Uma das configurações deste urbanismo de proximidade é o projeto da cidade em 15 minutos, idealizado pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno, professor na Universidade de Paris IAE – Pantheon Sorbonne. Em entrevista à versão espanhola do canal de televisão France 24, Carlos Moreno disse que o objetivo do projeto que está a ser implementado na capital francesa é revitalizar a proximidade para que em cada bairro as pessoas possam viver, trabalhar, fazer as compras, cuidar da saúde, ter acesso à cultura e ao lazer.
“No projeto que estamos a elaborar em Paris inserem-se essas coisas para que qualquer parisiense possa ter acesso a elas a pé ou de bicicleta. É um projeto de seis anos, mas já estamos a fazer coisas concretas, como abrir as escolas aos finais de semana para que haja atividades de diferentes tipos para a população local. Também temos uma proposta de fazer atividades culturais ao ar livre para que os artistas façam espetáculos nos bairros”, explicou o urbanista.
A ideia é que os habitantes de uma determinada localidade tenham acesso às suas principais necessidades num raio de até 15 minutos de distância das suas casas. “Isso obriga a que nós tenhamos uma forma de atrair as atividades comerciais suficientes para as pessoas, como alimentação, saúde, educação, serviços públicos. Numa região onde há pessoas idosas é preciso ter um centro de saúde perto para que as pessoas não precisem pegar no carro para ir ao hospital central. Se nós tivermos uma lógica de proximidade, já passa a ser possível uma cidade existir sem a necessidade de carros”, comenta Filipe Moura.
Alternativas para a redução de carros nas cidades
Uma das ideias para reduzir o número de veículos nas grandes cidades é a implementação de portagens urbanas. Na região central de Londres, por exemplo, os condutores têm de pagar uma taxa de congestionamento de 15£ (quinze libras) por dia para poderem circular pelas vias públicas de segunda a sexta-feira. Se o condutor deixar de pagar a taxa, a multa é de 160£ (160 libras). Com a medida, houve redução do congestionamento em cerca de 30%.
Outra cidade europeia que adotou as portagens urbanas foi Zurique. A maior cidade da Suíça passou a utilizar o conceito de travel demand management (TDM), que restringe a utilização de veículos privados com a adoção das portagens urbanas e com pagamentos de acordo com a distância a ser percorrida. Com a implantação, houve uma redução significativa do número de carros na cidade e ampliação do transporte público, com a criação de linhas adicionais, sendo que é possível encontrar paragens de autocarro ou de elétrico a cada 300 metros.
Na Noruega, com a redução da circulação de carros e com programas de consciencialização realizados na última década, Oslo conseguiu chegar às zero mortes por acidentes de trânsito em 2019. Nos últimos 20 anos, as velocidades máximas dos veículos nas vias foram gradualmente reduzidas, as calçadas foram alargadas para uso dos pedestres, vagas de estacionamento nas regiões centrais foram removidas e o transporte público assumiu o papel de principal modal de locomoção. A cidade caminha para ser a primeira capital do mundo sem carros nos próximos anos.
Assim como fizeram Londres, Zurique e Oslo, o forte investimento em transporte público é essencial na busca pela redução do número de carros a circular nas grandes cidades, explica Filipe Moura. “Temos que atender a um mote de transporte pesado, de elevada capacidade, como metro de superfície, comboio e BRTs, que são os autocarros de grande capacidade”, sintetiza o professor do IST.
O especialista em mobilidade afirma, ainda, que, em Lisboa, além de ampliar o transporte público dentro da cidade, é preciso que sejam criados parques periféricos na entrada da capital, para que as pessoas façam a transição para os transportes coletivos. “Isso ainda é mais importante numa cidade que se queira sem carros. Porque, se não tivermos isso, as pessoas vão continuar a dirigir-se ao centro da cidade com os carros ligeiros. Quanto maior a área de uma cidade sem carros, maior será a procura de modos alternativos de transporte”, explica Filipe Moura.
Contudo, para Pedro Nunes, além da melhoria do transporte público, os governos precisam de atuar na melhoria da mobilidade pedonal e de outros modos suaves de mobilidade. “A fruição do espaço público tem que ser repensada, devolvendo-o à população, com as oportunidades que resultam de ruas mais tranquilas. A mobilidade pedonal nas zonas urbanas é fulcral para a redução das emissões de gases com efeito de estufa e poluentes”, salienta o analista da ZERO.
Além dos benefícios para o meio ambiente, o aumento de zonas pedonais traz outros importantes impactos positivos para a sociedade e para a economia: “a redução da sinistralidade com a melhoria da segurança rodoviária, a redução da poluição sonora, a redução do uso do transporte individual e, consequentemente, dos custos para os cidadãos. A promoção da mobilidade pedonal produz ainda efeitos positivos para a saúde pública através da melhoria da qualidade do ar e da promoção de um estilo de vida mais saudável e diminuição do stress”, esclarece Pedro Nunes.
Neste contexto, a criação e ampliação de ciclovias e ciclofaixas é muito importante para a mobilidade de cidades que querem reduzir o número de carros nas ruas. Em Portugal, o Governo pretende chegar ao ano de 2025 com 5 mil quilómetros de ciclovias construídas em todo o país. Neste período, espera-se que as deslocações em bicicleta no território nacional aumentem de 1% para 3%, chegando a 7,5% em 2030, segundo dados da Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030.
Lisboa é a cidade portuguesa com o maior número de quilómetros de ciclovias e ciclofaixas: pouco mais de 180 km. Na sequência está o Porto, com 54 km de corredores exclusivos para bicicletas. Os números ainda estão longes das metas definidas pelo Governo.
Para reduzir essa distância, a Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta (MUBi) defende que, pelo menos, 10% do orçamento total do Estado para o setor dos transportes deveria ser destinado à mobilidade em bicicleta, e outros 10% ao modo pedonal. A MUBi defende, também, a educação para a mobilidade sustentável.
Num manifesto enviado aos partidos políticos que concorreram às Legislativas de 2022, a Associação defende o esforço por parte do Estado e das organizações educativas para informar, educar e consciencializar para as consequências das escolhas de modo de transporte. No manifesto, a entidade pede que sejam integrados conteúdos sobre mobilidade sustentável nos currículos escolares, além da realização de atividades com crianças e jovens que informem “malefícios sociais e para a saúde pública do uso do automóvel e as vantagens de usar transportes públicos”.
Iniciativas para a diminuição dos carros
Em Portugal, diversos concelhos estão a tomar pequenas iniciativas para incentivar a população a não usar carros e dar mais atenção a meios alternativos de transporte. No dia 22 de setembro de cada ano, quando se celebra o Dia Europeu sem Carros, Câmaras Municipais e Juntas de Freguesia de Norte a Sul do país promovem atividades como caminhadas e passeios de bicicleta para incentivar a população a deixar os ligeiros em casa.
Em Vila Nova de Famalicão, a Câmara Municipal já há alguns anos promove dias para celebrar as bicicletas, quando as ruas da cidade são fechadas para os automóveis. “A necessidade de desenvolvermos obras de reabilitação e modernização no centro da cidade, surgiu como a oportunidade perfeita para procedermos à mudança do paradigma, transformando a cidade, criando condições para que as pessoas cheguem rapidamente a pé, de bicicleta ou através de transportes públicos a locais essenciais, como o local de trabalho, as escolas, os serviços médicos, os serviços públicos ou ao comércio de proximidade”, explica o presidente da Câmara Municipal, Mário Passos.
Contudo, um dos projetos urbanísticos mais ambiciosos para a mobilidade urbana começará a sair do papel em 2030. É a Cidade do Conhecimento, que será um bairro sustentável de Setúbal e se tornará um modelo para várias cidades do mundo. A ideia é criar uma cidade onde a paisagem urbana não tenha a omnipresença do tráfego motorizado, mas um local onde os cidadãos possam usufruir do espaço público sem os condicionamentos normalmente impostos pelo uso excessivo do automóvel.
“A preocupação, primeiramente, é evitar que as pessoas e empresas tenham que adquirir veículos, mas que possam utilizar quando necessário. O modelo irá privilegiar o andar a pé como elemento estruturante da Cidade do Conhecimento, secundado pelos modos de micromobilidade para as viagens locais. Esses modos, como a bicicleta e a trotinete, servirão para ligar os cidadãos aos serviços de transporte coletivo que servem o município de Setúbal e assim satisfazer as viagens mais longas”, explica Filipe Moura, que também coordena o planeamento de mobilidade do projeto.
Assim como a Cidade do Conhecimento, em Setúbal, outros projetos de cidades sem carros estão a surgir pelo mundo. Na Arábia Saudita, o projeto “The Line”, do milionário Mohammad bin Salman, proibirá totalmente os carros e será projetado sem estradas ao longo do Mar Vermelho. A ideia é que todos os serviços essenciais estejam acessíveis a uma distância de até cinco minutos a pé para qualquer pessoa. Com o transporte público a ser o mote principal do projeto e movido a energia renovável, os transportes vão demorar no máximo 20 minutos para atravessar toda a nova cidade.
*Artigo publicado na primeira edição da Mob Magazine