O conceito de Mobility as a Service (MaaS, na sigla inglesa) ou mobilidade como serviço pretende tornar as deslocações nas cidades mais ágeis, simples e cómodas. Do que se trata? Qual o cenário atual? Que futuro? Foi o que perguntámos a quem trabalha com este conceito que parece ter vindo para ficar.
Mitigar os efeitos das alterações climáticas é um objetivo transversal ao mundo, que vai estabelecendo metas para cumprir, na sua maioria até 2030, e assim ajudar a preservar a saúde do planeta. Reduzir as emissões de dióxido de carbono é um dos grandes compromissos das cidades e, para tal, evitar deslocações em veículos privados que, muitas vezes, só transportam uma pessoa é um dos desígnios das metrópoles que viram nascer um novo conceito de mobilidade: o MaaS, a sigla inglesa para Mobility as a Service que, em português, significa a mobilidade como um serviço.
O MaaS pode descrever-se como a integração e o acesso a diferentes meios de transporte (bicicletas, transportes públicos, carros partilhados, aluguer de veículos, scooters, táxis e outros) numa mesma plataforma. As plataformas MaaS, que são essencialmente aplicações disponíveis para smartphone, permitem assim ter num mesmo local, de fácil utilização, uma vasta disponibilidade de serviços de transporte, com tarifas competitivas, ou seja, que o resultado da minha combinação modal seja desejavelmente melhor e de custo inferior à soma das soluções individuais (ou mesmo da viatura própria).
Daniela Carvalho, administradora na TIS.pt, consultores em Transportes, Inovação e Sistemas, SA, concretiza: “ao nível da informação deve permitir ao utilizador um conhecimento completo e fácil de todas as soluções modais disponíveis num dado momento e num dado local, sejam elas assentes no transporte coletivo, táxis, carsharing, bicicletas partilhadas, etc.; ao nível tarifário, garantir que o preço global a pagar pela solução é menor que o valor a pagar por cada uma das soluções individuais bem como, em soluções mais evoluídas, esta busca é feita não só viagem a viagem, mas também para períodos temporais tirando partido da transferência de títulos ocasionais tipo passe (diário, semanal ou mensal); ao nível físico, para garantir a comodidade e segurança nas transferências entre modos, dando opções para que o utilizador possa privilegiar os aspetos mais importantes para a sua deslocação como, por exemplo, menor número de transbordos ou distância a percorrer a pé; mas também integração ao nível contratual, de modo a dar garantia que as anteriores são cumpridas e possam gerar valor para os utilizadores”.
As plataformas de MaaS caracterizam-se pela facilidade que trazem às deslocações, para um determinado percurso introduzido pelo utilizador são sugeridas rotas e várias formas de a realizar, sendo ainda possível o pagamento dos meios de transporte. Esta integração veio facilitar o quotidiano dos cidadãos das grandes cidades que, aos poucos, poderão optar por deixar o seu meio de transporte privado em casa e recorrer a estas aplicações para saber a forma mais simples de, em partilha, realizar o seu percurso.
“Acreditamos que os dados são o combustível da mobilidade do futuro. Uma experiência de MaaS perfeita ajudará os cidadãos a optar por transporte público coletivo e por micromobilidade em detrimento do transporte privado”, comenta Manuel Molés, european partnerships manager na Moovit.
O especialista neste tema e Chief Commercial & Product Officer, da Asistobe, Scott Shepard, pormenoriza ainda que “a integração multimodal digital é um verdadeiro motor de mudança, pois tira as pessoas de seus próprios carros e fornece uma alternativa realista para deslocações diárias nas cidades e viagens de negócios. Isso afetará a forma como trabalhamos, compramos e vivemos na cidade, mudando o espaço físico urbano anteriormente ocupado por automóveis”.
“(…)A integração multimodal digital é um verdadeiro motor de mudança, pois tira as pessoas dos seus próprios carros e fornece uma alternativa realista para deslocações diárias nas cidades e viagens de negócios.”
Scott Shepard, Asistobe
As cidades portuguesas estão preparadas para esta transição?
Criar aplicações e disponibilizá-las no mercado poderá até ser o aspeto mais fácil do MaaS. Depois é necessário um grande volume de dados – que abordamos um pouco mais à frente – e urge que as autoridades também tenham uma postura alinhada com estes novos conceitos.
A TIS.pt tem trabalhado com as comunidades intermunicipais do país para ajudar nesta conversão para uma mobilidade integrada. Daniela Carvalho recorda que, nos últimos anos, as autoridades começaram a dispor de “um manancial de informação que até agora não tinham e que lhes permite uma monitorização e gestão proativa da cidade”. A administradora da TIS.pt acrescenta ainda que “as cidades também têm feito esforços muito significativos na preparação do espaço público para acolher os modos ativos, quer através da construção de vias cicláveis, quer no tratamento de passeios e na introdução do modo a pé nas preocupações de planeamento, quer ainda na regulação dos modos comumente denominados como micromobilidade. A lógica de coexistência entre modos e as pessoas está também a ganhar muita força com o que isso significa de tratamento e partilha do espaço”.
A mesma responsável reforça que “a descarbonização e a digitalização da mobilidade não são negociáveis e, portanto, em ritmos mais ou menos acelerados, o caminho está traçado”.
As cidades, um pouco por toda a Europa, Portugal incluído, estão numa fase de adaptação a este novo conceito. Há investimentos em infraestruturas que promovam uma mobilidade mais sustentável. Scott Shepard destaca ainda que “no nível digital, muitas cidades procuram adquirir ou incentivar as operadoras de mobilidade partilhada a juntarem-se em hubs de mobilidade partilhada para promover um ecossistema mais multimodal”. Manuel Molés, da Moovit, acrescenta que “a mobilidade sustentável é, em simultâneo, um desafio e uma mudança necessária que requer atitudes ambiciosas da administração pública, das empresas e dos cidadãos.”
O que está a ser feito em Portugal?
Nos últimos dois anos vivemos tempos de menor mobilidade devido às restrições impostas pela pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2. Nota-se um retomar do quotidiano e, novamente, deslocações mais frequentes e rotineiras. As cidades portuguesas voltam a encher-se de bicicletas privadas e partilhadas, de veículos de carsharing e os transportes públicos recuperam passageiros. Um cenário que era muito familiar a quem vivia ou visitava as principais cidades portuguesas até março de 2020. O que estará a ser feito no nosso país em termos de mobilidade partilhada?
Daniela Carvalho, da TIS.pt, responde: “há muitas intenções e muitas iniciativas em curso, nomeadamente através de estudos-piloto, mas ainda nenhuma pode ser efetivamente designada de MaaS. Os sistemas mais próximos de um MaaS encontramos em Cascais, no projeto integrado da Via Verde com a Fertagus e na área metropolitana do Porto, onde o Anda oferece também algumas vertentes de soluções MaaS. Mas não diria que estamos mal, e que muito do que tem sido feito está a permitir consolidar esquemas colaborativos, testar soluções, desenvolver sistemas de informação multimodal, ou seja, no fundo estabelecer bases para a sua consolidação”, começa por explicar.
“De algum modo, se queremos passar de uma lógica de pilotos e testes para um sistema em plena operação, importa também que se reflita sobre o modelo de financiamento que leva a que muitas cidades e comunidades intermunicipais estejam muito dependentes da abertura de linhas de financiamento para a concretização de projetos, o que limita substancialmente a definição de uma estratégia coerente de intervenção. O Plano de Recuperação e Resiliência poderá ainda ser uma ferramenta importante neste sentido”, defende esta especialista.
Mobilidade com dados
O big data é também uma das expressões do século XXI. Saber os hábitos da sociedade – horários de deslocações nas comutações diárias, hábitos de consumo, costumes alimentares e muitas outras informações – é hoje considerado o ‘novo ouro’ para as empresas que detêm essa informação e a trabalham.
Manuel Molés recorda que “os dados de procura e de operação dos serviços MaaS proporcionam, aos gestores das cidades e operadores de transportes, informação importante para adequar a oferta e a qualidade geral dos serviços disponibilizados, ajustando-os às necessidades reais dos utilizadores. Os dados permitem aos fornecedores de MaaS tornar o serviço mais personalizado e otimizado.”
A recolha da informação e a sua organização para que os dados possam ter uma aplicação real e útil continua a ser um desafio, apesar da grande evolução dos últimos anos.
“Acreditamos que os dados são o combustível da mobilidade do futuro.”
Manuel Molés, Moovit
Daniela Carvalho comenta: “há bastantes desafios pela frente, quer ao nível da validação dos mesmos, quer da sua disponibilização de forma integrada, quer sobretudo que os mesmos sejam geradores de valor. Não chega simplesmente ter dados, eles têm de ser úteis, credíveis, atuais e acessíveis”. A mesma responsável conclui ainda que “em 2020, no âmbito de um estudo para a Comissão Europeia sobre sistemas multimodais de informação e sua acessibilidade a todos, em especial pessoas com deficiência e mobilidade reduzida, verificámos que, de forma quase transversal a todos os Estados-membro, muito ainda tem de ser feito para assegurar a qualidade dos dados sobre os quais as soluções têm vindo a ser desenvolvidas.”
Os dados, tão relevantes para uma melhor mobilidade nas cidades, requerem também, defende Scott Shepard “mais colaboração entre operadores privados, autoridades de transporte público e reguladores da cidade”. Este trabalho de equipa é essencial para gerir o espaço físico das cidades. “Os dados são um elemento-chave nessa colaboração e a capacidade de partilhar informações compatíveis com o Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados vai garantir a integração e o sucesso dos serviços e do MaaS em geral”.
A pandemia retraiu o crescimento do mercado da mobilidade?
A pandemia da Covid-19 que fez parar alguns destes serviços, trouxe numa fase inicial dúvidas e receios. No entanto, aquilo que parecia ser uma ameaça, pode até ter funcionado como uma oportunidade para os operados de mobilidade e, consequentemente, para o conceito de MaaS em geral.
Manuel Molés, da Moovit, diz que a pandemia trouxe tendências como “a digitalização da mobilidade, isto é, otimização dos serviços existentes e criação de novos, baseados nos dados e soluções inteligentes que mudam a forma como as pessoas se deslocam e consomem os produtos; os motores a combustão interna tendem a desaparecer e o futuro terá carros menos poluentes; haverá um aumento da partilha de viaturas seja em modelos de carsharing (a utilização de um veículo por várias pessoas, em momentos diferentes) ou em ridesharing (vários utilizadores partilham o carro em simultâneo) e ainda, no futuro, os carros vão estar conectados e circularão de forma autónoma, sem condutor, o que poderá oferecer uma multiplicidade de oportunidades para os serviços de mobilidade.”
Daniela Carvalho, da TIS.pt, acrescenta: “os efeitos imediatos da pandemia na mobilidade urbana têm demonstrado a necessidade de uma cada vez maior integração e resiliência do sistema. Mas a pandemia veio também trazer novas oportunidades porque as pessoas procuram soluções personalizadas, mas também desafios acrescidos, nomeadamente na retração verificada na utilização dos transportes públicos. Neste campo, as soluções MaaS podem também contribuir para aumentar a segurança nos sistemas convencionais dando informação sobre o nível de ocupação e grau de limpeza e higiene. De igual modo, juntar densidade com diversidade funcional, e um ambiente seguro para essas deslocações, com base no conceito de “Cidade dos 15 minutos”, indicia ser parte da chave da solução.”
“Sendo certo que nada disto é novo, e que desde há vários anos se procura integrar os modos ativos na mobilidade, de certo modo, todos reconhecem que a pandemia acabou por criar uma maior vontade de pensar e planear a mobilidade de uma forma mais sustentável, e o MaaS é também parte da solução global”, defende.
O conceito de MaaS terá assim um grande futuro pela frente e impacto direto na sociedade, facilitando deslocações, ao mesmo tempo que se trabalha na melhoria da qualidade ambiental.
“A descarbonização e a digitalização da mobilidade não são negociáveis e, portanto, em ritmos mais ou menos acelerados, o caminho está traçado.”
Daniela Carvalho, TIS.pt
Scott Shepard comenta: “o futuro do MaaS aponta para um papel mais ativo por parte das autoridades públicas e das empresas privadas para oferecer serviços partilhados e multimodais aos utilizadores. Haverá também uma mudança na lógica das empresas que, atualmente, têm um modelo business to consumer (numa tradução livre será produto para consumidor) para uma oferta multimodal, com integração de várias operadores/empresas. O mercado de MaaS está em crescimento e torna-se cada vez mais complexo e multidimensional, com muitas interfaces e utilizadores diferentes no futuro, o que é bom para a promoção da mobilidade multimodal”.
A terminar, Manuel Molés, da Moovit, explica que “a nossa visão de uma experiência MaaS é dotar os passageiros de ferramentas que lhes permitam planear, pagar e viajar em qualquer opção, seja transporte público, mobilidade partilhada e micromobilidade, tudo numa mesma plataforma”. O mesmo responsável conclui ainda que a mobilidade como um serviço é uma realidade e acredita que em breve se vai impor nos mercados europeus como já acontece em Israel ou nos Países Baixos.
De referir que o mercado mundial de MaaS situa-se atualmente “nos 3,3 bilhões de dólares e estima-se que, em 2040, possa representar 40,1 bilhões de dólares”, avançou Scott Shepard.