Em entrevista, a CEO da Sociedade Ponto Verde, Ana Trigo Morais, explana que os portugueses já têm bons hábitos de reciclagem, ao nível particular e empresarial. Mas há ainda um caminho a fazer em alguns setores e, por isso, aponta medidas que poderiam incentivar o aumento da reciclagem no país.
Como está a evolução da taxa reciclagem em Portugal?
A evolução da reciclagem no nosso país tem sido extraordinária. Mas esta frase apenas pode ser aplicada às embalagens, que é o único fluxo urbano a cumprir as metas em Portugal, com a exceção do vidro. E ainda assim, segundo as nossas estimativas, nas embalagens ainda se estão a enterrar 31 milhões de euros de recicláveis por ano. Portanto, há ainda muito a fazer, do ponto de vista de melhoria de serviço, para conseguir recolher estes resíduos. Quanto aos restantes resíduos urbanos, como as matérias orgânicas, bio resíduos, os monos, os elétricos e eletrónicos, falta reciclagem. Em alguns casos, não existe sequer um fluxo definido, o que faz com que Portugal, globalmente, ainda envie para aterro cerca de 64% de todos os resíduos urbanos que produz. Isto é tão mais crítico quando a meta é reduzir para 10% até 2035. Voltando ao setor das embalagens, o sistema de gestão destes resíduos de embalagem funciona bem e tem vindo a ser aperfeiçoado, permitindo hoje aos cidadãos terem à sua disposição vários sistemas de recolha seletiva, onde se destaca uma rede nacional com mais de 70 mil ecopontos. Numa análise aos dados da reciclagem, recordo que, em 2022, a recolha das embalagens que são colocadas no mercado cresceu em todos os materiais, com a taxa de retoma global a ter atingido quase 60% (59,6%). A meta atual é de 55% e o país terá de chegar a 65%, em 2025, e a 70%, em 2030. Também no primeiro trimestre deste ano, os portugueses continuaram a reciclar mais, tendo sido recolhidas 108.368 toneladas de embalagens nos ecopontos nacionais, um aumento de 3% em comparação com o período homólogo de 2022.
“Nas embalagens ainda se estão a enterrar 31 milhões de euros de recicláveis por ano”
Quais os maiores desafios da circularidade na área empresarial?
Este é um setor que tem sabido modernizar-se, mas que ainda está muito aquém do seu potencial. Para continuar a evoluir depende da inovação e de um maior uso da tecnologia e da digitalização, o que requer que as empresas tenham capacidade de investimento em I&D. Desta forma, por um lado, possibilita a criação de embalagens e produtos direcionados para o grande consumo, que sejam cada vez mais sustentáveis em todo o seu ciclo de vida, e, por outro lado, desenvolvam novas soluções capazes de mobilizar os cidadãos para que reciclem não só mais como melhor. É um caminho que as empresas estão a fazer, ao abrigo da sua responsabilidade enquanto produtores e embaladores, mas também as que têm um papel na promoção da recolha seletiva e no tratamento adequado dos resíduos de embalagem. É a promoção desta circularidade que vai permitir gerar valor ambiental, social e económico para Portugal. Para que este trajeto continue a ser feito, seria importante, na nossa perspetiva, que o quadro de atuação das empresas estivesse mais estabilizado, com uma compliance ambiental que seja razoável do ponto de vista económico. Com o atual ciclo de financiamento do país e a aprovação recente do Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos 2023 (PERSU 2030), que é um instrumento de planeamento de referência, consideramos ser uma oportunidade para a concretização da política pública nacional nesta matéria, sendo o maior desafio a sua execução. Continuamos a defender um trabalho mais coordenado e colaborativo entre todas as partes interessadas e os agentes envolvidos para conseguir aferir-se os instrumentos, os meios e as ações necessários para o cumprimento das metas e objetivos estabelecidos. Além de ser essencial conseguir determinar as necessidades de investimento para reforço das capacidades da recolha seletiva e triagem multimaterial das embalagens, mas também para otimização da operação, a custos eficientes e com garantias de qualidade e nível de serviço.
Quais os materiais onde o processo é mais desafiante?
Neste momento, o vidro é o material que requer mais atenção no que diz respeito ao processo de recolha. Existe uma clara necessidade de recolher mais recicláveis, já que os dados do primeiro trimestre de 2023 mostraram uma quebra de 2% em comparação com o mesmo período do ano passado. Isto significa que há trabalho que precisa de continuar a ser feito e reforçado. Neste contexto, a SPV vê como essencial a alteração ao modo como as diferentes entidades se articulam com o sistema, nomeadamente no canal HORECA, setor onde são geradas as quantidades mais significativas de vidro para reciclagem. Mas não só. Também é necessário apostar em novas formas para a deposição destes resíduos, que sejam mais cómodas e eficazes e aqui, uma vez mais, vocacionadas para estes estabelecimentos comerciais. Só assim será possível assistirmos a um aumento efetivo e consistente da taxa de reciclagem deste material em Portugal. Recordo que as metas do vidro são alcançar os 70% em 2025 e 75% em 2030 e, portando, há ainda muito caminho a trilhar. A este propósito devo salientar que foi com esta ambição, de darmos um contributo para o aumento da recolha seletiva do vidro, que a Sociedade Ponto Verde lançou, em março de 2022, o programa Mais Vidro, Mais Reciclagem #Horecafazpartedasolução em conjunto com a Associação dos Industriais de Vidro de Embalagem. Nos últimos 14 meses temos estado a desenvolver um projeto piloto que apresenta muito bons resultados. Conseguimos instalar os 270 vidrões com baldeamento assistido e entregar contentores especiais a 1.500 estabelecimentos para facilitar a deposição de embalagens de vidro. Isto levou a um aumento de 13,2% nas quantidades de vidro recolhidas nas zonas onde o mesmo esteve em execução (Vizela, Guimarães, Porto e Matosinhos, Cascais e Algarve). O que nos permite estimar que se existissem, a nível nacional, mais vidrões com este inovador sistema, dedicados a cobrir as necessidades do HORECA, em vez de uma quebra, o país teria chegado à meta da reciclagem do vidro (65%). Existe, portanto, mais do que um desafio, uma oportunidade.
“O vidro é o material que requer mais atenção no que diz respeito ao processo de recolha”
Para melhor os índices de reciclagem, quais as medidas que a SPV defende?
Ecopontos mais próximos e inovadores com recurso a sensorização ou a implementação de um sistema PAYT (pay as you throw) são algumas das medidas que a Sociedade Ponto Verde tem vindo a defender, junto das autoridades governativas e dos sistemas municipais. Em paralelo, temos de continuar com campanhas de sensibilização e de educação ambiental, a esclarecer os cidadãos, a incentivar a uma maior transparência no custo da reciclagem, para que as pessoas possam ter uma participação ainda mais ativa.
Que avanços foram feitos no ecodesign? Há progressos significativos nas embalagens mais ecológicas?
Sem dúvida, até porque o setor das embalagens não se limita a cumprir as metas da reciclagem, como investe constantemente em inovação para aperfeiçoar métodos e conseguir produzir embalagens com um maior grau de reciclabilidade, que usem menos matéria-prima ou materiais alternativos, mas também que consigam ultrapassar constrangimentos à reciclagem. Neste processo é fundamental seguir-se os princípios do ecodesign e do design for recycling e, por isso, a SPV está ao lado dos seus clientes, a incentivar e a ajudá-los a encontrarem melhores versões das embalagens, mas também a disporem de alegações ambientais credíveis e confiáveis. Posso dar nota que através deste nosso trabalho e do investimento que alocamos à Inovação, clientes nossos já nos indicaram que diminuíram 50% do peso das embalagens, evitaram a colocação no mercado de 6.600 toneladas de embalagens e geraram menos 8.000 toneladas de resíduos.
Além da reciclagem, a pedagogia da reutilização faz sentido?
Sem dúvida. Hoje em dia, não é suficiente criar estratégias de sensibilização e comunicação ou novas soluções que mobilizem apenas para a reciclagem para satisfazer as necessidades de toda a cadeia de valor. Um consumo moderado, consciente e sustentável, a pensar no futuro do Planeta, pressupõe “Reduzir”, “Reutilizar” e “Reciclar”, ações que devem acontecer, precisamente, por esta ordem, num grande trabalho de literacia ambiental junto de todos, iniciando nos mais jovens.
A SPV apoia alguns projetos de I&D nesta área. Que projetos destacaria e quais as potencialidades futuras?
A Inovação é um dos eixos estratégicos da atuação da SPV e este nosso compromisso materializa-se de forma muito visível na plataforma digital Ponto Verde LAB e no programa de co-inovação colaborativa, Re-Source. Cada um tem com as suas características, mas têm em comum o facto de beneficiarem os agentes da cadeia de valor do setor, seja pela forma como promovem a circularidade das embalagens como por potenciarem a criação de novas soluções tendo em vista tornar o sistema de gestão de recolha e reciclagem mais eficaz. Existem vários projetos que poderia destacar, mas vou focar-me nestes três como exemplos:
- EcoInCer, tem como objetivo a valorização de escórias, subproduto que resulta no final da incineração do lixo comum ou indiferenciado, ou seja, que é produzido em nossas casas e não é enviado para reciclagem. Estas escórias, que antes eram simplesmente enviadas para aterros sanitários, levam à produção de matéria-prima reciclada para ser utilizada na produção de cimento, argamassa, corantes para tintas e até mesmo nanomateriais para anticorrosivos, mas é sobretudo na cerâmica e no vidro que oferece mais potencial.
- Outro projeto inovador, liderado pela empresa Givaware, demonstra como a criatividade pode impulsionar a economia circular. Através da engenharia de materiais e do design circular, foi desenvolvido um processo industrial para transformar plásticos mistos provenientes da reciclagem de embalagens usadas em um material com potencial de comercialização. Esse material foi utilizado na criação de brinquedos 100% reciclados e recicláveis, para a sua marca Kuski, centrado no planeta.
- O terceiro projeto é liderado pelo IBET – Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica, em parceria com a Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa e o Instituto Superior de Agronomia, tem como objetivo criar películas aderentes a partir da pele do tomate e da casca do grão de milho.
Que programas de incentivo e financiamento existem para as empresas nesta área?
A SPV tem uma linha de financiamento a Projetos e Estudos de Investigação & Desenvolvimento que permite apoiar projetos de Inovação na área da cadeia de valor das embalagens, como forma de impulsionar o crescimento sustentável e a economia circular. As candidaturas podem ser feitas, nomeadamente, através da plataforma Ponto Verde Lab, mas também no âmbito do programa Re-Source, onde na última edição houve uma disponibilidade financeira por parte da SPV para apoiar os quatro pilotos, procedendo ao cofinanciamento em 74% do total de 188.000€ investidos nestes projetos. Globalmente, fruto desta nossa estratégia, a SPV já apoiou 46 projetos de I&D de 87 entidades que decidiram inovar connosco, refletindo-se num investimento da nossa parte na ordem dos 13 milhões de euros.
A fiscalidade ‘verde’ existente está adequada?
Deveria existir uma maior transparência na política fiscal para trazer, nomeadamente, aos cidadãos a noção de que quanto mais encaminharem para reciclagem, menos custo terão. Se o pretendido é mais colaboração e mobilização dos portugueses no ato da reciclagem, é o que deveria acontecer o quanto antes. Para este efeito, que é também uma forma de reconhecimento, deveria desagregar-se a tarifa de gestão dos resíduos urbanos da fatura da água, uma vez que esta indexação não só não dá incentivo para se reciclar mais como não permite perceber quanto custa a mais ou a menos.