Transição energética

Aposta nas renováveis trava na burocracia e incerteza regulatória

Aposta nas renováveis trava na burocracia e incerteza regulatória iStock

A transição energética em Portugal enfrenta desafios estruturais que ameaçam o desenvolvimento de novos projetos. Apesar do potencial solar e eólico do país e do interesse de investidores nacionais e estrangeiros, os entraves no licenciamento, a imprevisibilidade fiscal e a falta de uma rede elétrica adaptada comprometem a velocidade com que o setor pode crescer.

A complexidade do cenário foi amplamente debatida no painel que teve como foco a definição regulatória fiscal e de incentivos para acelerar projetos de energia renovável, que aconteceu no Energyear 2025, e onde vários especialistas destacaram as dificuldades que enfrentam no terreno.

“Em Espanha e em Portugal, temos um mercado único em termos de energia. A Península Ibérica, neste sentido, é uma ilha energética, há pouca ligação com o resto da Europa. Atualmente, no que toca ao desenvolvimento, há vários estrangulamentos, tanto em Espanha quanto em Portugal, que impedem o desenvolvimento dos projetos”, alertou Isabel Rodriguez Rivera, managing director de Clean Energy Equity Investments da Nuveen Infrastructure. “Temos todos os atrasos que se verificaram no passado, e os estrangulamentos continuam bem presentes. Em Portugal há falta de novas ligações, a rede de integração da cadeia energética é escassa. É muito difícil estabelecer novas ligações, e quando estabelecemos essas novas ligações, isso implica um investimento de capex que faz com que o projeto não seja viável”, lamenta.

O licenciamento surge como um dos principais bloqueios ao crescimento do setor. Para Afonso Coelho, head of Business Development da Lightsource BP, os entraves administrativos podem ser divididos em três grandes categorias: “em primeiro lugar, temos uma falta de resposta estrutural das entidades e um incumprimento dos prazos na resposta, que acaba por ir acumulando atrasos nos projetos e que é difícil de entender, é difícil também de explicar depois. O segundo é alguma deficiência na legislação e algumas alterações que vão sendo feitas, o que cria um quadro de imprevisibilidade. E, por último, um conjunto de decisões discricionárias dos vários atores do processo de licenciamento, que acabam, por um lado, por não nos permitir saber exatamente como é que nós devíamos endereçar cada problema em cada projeto, porque temos decisões que podem não ser iguais para projetos localizados em sítios diferentes”.

Um longo percurso burocrático
O desenvolvimento de um parque solar ou eólico em Portugal, por exemplo, implica um longo percurso burocrático. “No essencial, há três grandes processos de licenciamento: ambiental, elétrico e municipal. Mas existe um conjunto de outras entidades que têm de ser ouvidas, têm de dar parecer, e estas entidades, normalmente, ou não respondem aos promotores, ou vão acumulando atrasos na resposta”, explica Afonso Coelho. “Para nós, que somos um desenvolvedor internacional, torna-se muito complicado prever qual vai ser o desenvolvimento de um projeto, quanto tempo vai demorar e qual vai ser o resultado”, diz, acrescentando ainda as constantes alterações legislativas à lista de obstáculos. “Os vários governos têm tido sempre a opção de acelerar os processos, mas nem sempre as alterações legislativas têm tido esse impacto”, afirmou. E, à laia de exemplo, apontou: “Na parte ambiental, foi alterado o prazo do processo de avaliação de impacto ambiental, tendo sido aumentado em 50%. A ideia era que, como não haveria uma suspensão no meio do processo, este seria mais rápido. A realidade é diferente. No fundo, só fizemos com que o processo, em vez de durar 100 dias úteis, passe a durar 150, portanto piorou”.

Os atrasos sucessivos e a imprevisibilidade no licenciamento têm um impacto direto na viabilidade económica dos projetos renováveis, que leva a uma preocupação crescente por parte dos possíveis investidores. “Há um constante aumento dos custos de capex, seja da própria central, seja das ligações, e, ao mesmo tempo, um decréscimo das estimativas de receitas, devido ao decréscimo das estimativas de preço da eletricidade”, explicou Afonso Coelho. “Temos aqui um bocadinho a tempestade perfeita: aumento de custos, diminuição de receitas… não é preciso dizer mais nada”.

Em jeito de confirmação, Isabel Rodriguez Rivera afirmou, ainda, que a regulamentação precisa acompanhar o desenvolvimento do setor. E, pegando no exemplo das baterias declarou ser “necessário regulamentar a implementação das baterias”. Mas “muitas vezes, aquilo que vemos é que os investimentos vão mais à frente do que a regulamentação. Precisamos, nesse sentido, de ter um quadro regulamentar estável para que a produção da bateria possa ser integrada na produção solar”, apelou.

Renato Carvalho Viana, head of Portugal da R.Power, partilha da mesma preocupação. “A ideia de um Balcão Único é excelente (anunciado pela EMER 2030), mas ainda estamos longe de ter um sistema centralizado e transparente que permita monitorizar o andamento dos processos. No próximo futuro o potencial, espero eu efetivo, Balcão Digital que centralize esse processo será fundamental para que nós, na qualidade de promotores e investidores, consigamos monitorizar o andamento do processo de licenciamento e perceber em que entidade concreta, ele ficou preso e onde é que nós temos de intervir”, explicou. “Por outro lado, os municípios nem sempre estão sensibilizados para esta questão, o que gera ainda mais dificuldades”.

Fiscalidade também atrasa o setor
A fiscalidade é outro fator que desincentiva os investidores. “Não é a fiscalidade que vai trazer as boas notícias aqui hoje ao debate, porque, de facto, quando falamos de impostos, começamos logo por ter um discurso enviesado pelo facto de serem necessárias receitas para financiar o Estado”, declarou Serena Cabrita Neto, partner e head of Tax Department da Cuatrecasas, logo no início da sua intervenção. “O sistema fiscal em Portugal é realmente muito complexo. Primeiro, porque tem uma base estadual e central, e depois, porque também há interesses das entidades municipais, já que o IMI e o IMT são receitas que revertem para os municípios. Por isso, quando falamos de litígios fiscais, não estamos só a falar de disputas com o Estado central, mas também com os municípios, que têm interesse direto na arrecadação de receitas”.

A incerteza fiscal reflete-se também na forma como os municípios gerem o IMI e outras tributações aplicáveis ao setor. “Cada entidade tem a sua interpretação. O que hoje é aceite pode ser contestado amanhã”, criticou a fiscalista. “Os investidores querem previsibilidade. Se não souberem quais vão ser os custos fiscais de um projeto a médio e longo prazo, é natural que optem por investir noutros mercados com regras mais claras”.

Apesar dos desafios, os especialistas apontam soluções. “Precisamos de um mercado elétrico mais eficiente e previsível”, defendeu Afonso Coelho. “Os contratos de longo prazo (PPAs) são essenciais para dar segurança aos investidores. Mas, neste momento, o que acontece é que existem algumas empresas que podem ser qualificáveis como off-takers para assinar PPAs connosco, mas há muitas outras que não conseguem garantir a execução desses contratos de longo prazo. Se houvesse um mecanismo de garantia para essas empresas, poderíamos ter um mercado mais dinâmico e eficiente”.

A questão da rede elétrica é também central e “o investimento na rede é um tema político e regulatório que precisa de avançar”, afirmou Isabel Rodriguez Rivera. “Os anos passam e nada muda. Precisamos de um quadro regulamentar estável para garantir que os investimentos sejam viáveis a longo prazo”, afirmou.

Com um setor promissor, mas travado pela burocracia e instabilidade regulatória, Portugal arrisca-se a perder o interesse de investidores estrangeiros. “Os investidores vão colocar o dinheiro onde houver previsibilidade”, concluiu Afonso Coelho. “Se não criarmos um ambiente favorável, vamos perder este comboio”.

 

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