Um mundo de resíduos
Descodificar a legislação que hoje existe sobre resíduos é uma viagem que exige um guia experiente para não se incorrer numa saga de mil e uma noites mal dormidas. Seria muito mais fácil e aprazível se houvesse um roteiro, à semelhança do que fez com mestria Umberto Eco no seu “Seis Passeios nos Bosques da Ficção” em relação aos artifícios e às técnicas de escrita usadas nas obras de diferentes autores, que nos indicasse cada caminho, cada desvio ou cruzamento da miríade de soluções legislativas produzidas nas últimas décadas.
A profusão de regras neste domínio deve-se, sobretudo, ao impulso da Comissão Europeia, que consagrou um regime geral, a Diretiva Quadro para os Resíduos (Diretiva 2008/98/CEE), para gerir aquilo que já se anteciparia como uma das principais questões a resolver na Europa do Século XXI – a gestão dos resíduos.
Ao regime geral sucederam-se tantas regulações setoriais quantas as tipologias de resíduos identificáveis em cada momento, entre as quais regras específicas para resíduos: (i) de baterias e acumuladores; (ii) de veículos em fim de vida; (iii) de extração mineira; (iv) hospitalares; (v) de construção e demolição; (vi) de equipamentos elétricos e eletrónicos; (v) de óleos; (vi) de navios; (vii) agrícolas; (viii) de plásticos; (ix) de embalagens; etc.
Mais profícuo que o legislador só mesmo a produção de resíduos, que não pára de aumentar significativamente na União Europeia (UE) e em Portugal. Com efeito, de acordo com os últimos dados da Comissão Europeia, menos de 40% dos resíduos produzidos anualmente na União Europeia são reciclados e em muitos Estados Membros 60% ainda tem como destino a incineração ou os aterros.
De acordo com o último Relatório do Estado do Ambiente, divulgado pela Agência Portuguesa do Ambiente, Portugal não destoa da média europeia, com 57% dos resíduos urbanos produzidos no continente do país a serem depositados em aterros e uma taxa de reciclagem ainda abaixo das metas fixadas.
As recentes alterações na legislação de resíduos
A nível europeu, os planos e as ações para uma Economia Circular têm-se desenvolvido sob o chapéu do Pacto Ecológico Europeu e as políticas de conversão da indústria para uma produção mais competitiva e sustentável, mais eficiente na utilização de recursos e capaz de contribuir para a meta da neutralidade climática em 2050 na Europa.
Em Portugal, dois documentos essenciais foram publicados em 2023: o Plano Estratégico para os Resíduos Urbanos (PERSU2030) e o Plano Estratégico para os Resíduos Não Urbanos (PERNU2030), atualizando e uniformizando as políticas no sector, estabelecendo metas e indicadores para 2025, 2030 e perspetivando já também 2050.
À luz destes instrumentos de estratégia, foi publicado o Decreto-Lei n.º 24/2024, de 24 de março, que alterou em conformidade o Regime Geral da Gestão de Resíduos, o UNILEX, o regime de deposição de resíduos em aterro e o regime para a redução do impacto de determinados plásticos no ambiente.
O propósito é o de garantir o cumprimento das metas nacionais fixadas no PERSU2030 e no PERNU2030 quanto à recolha e valorização dos resíduos, caminhando para uma percentagem residual (até 10%) do que é encaminhado para aterros.
As alterações são de vária ordem, podendo-se destacar as seguintes:
- A expansão da responsabilidade alargada do produtor a dois novos fluxos de resíduos: o das mobílias e colchões e o dos produtos de autocuidados de saúde;
- Um sistema de licenciamento mais concorrencial, mais estável (com licenças que passam de 5 para 10 anos) e com responsabilidades acrescidas no cumprimento das metas nacionais de recolha e reciclagem dos resíduos;
- Novas obrigações para os agentes do mercado (p.e., produtores do produto, embaladores ou grandes superfícies comerciais) referentes, designadamente, a marcação das embalagens, informação sobre a sustentabilidade dos produtos disponibilizada ao consumidor, áreas dedicadas a bebidas em embalagens reutilizáveis e a produtos a granel, ou colocação de sacos plásticos leves no mercado;
- A operacionalização do Sistema de Depósito e Reembolso (SDR), numa primeira fase, circunscrito a embalagens de bebidas de plástico, metal ferroso ou alumínio e com volumetria até 3 litros, assim estruturando um sistema de recolha que passará muito pelos sectores da hotelaria, restauração, cafetaria e catering.
Oportunidades no horizonte
A regulação dos resíduos tem vindo a ser desenvolvida e revista no sentido de contribuir para a economia circular na premissa de, sempre que possível, extrair recursos de alta qualidade a partir dos resíduos recolhidos. A recolha de resíduos é, portanto, o motor para a sua reutilização sucessiva e para o seu potencial uso como matéria-prima para novos produtos.
O universo das embalagens será o exemplo paradigmático, cujas diversas medidas concorrem para que a breve prazo no mercado europeu só sejam disponibilizadas embalagens que garantam a sua circularidade. Por outro lado, o aumento dos “ecovalores” isto é, da prestação financeira que os produtores do produto, embaladores ou fornecedores de embalagens de serviço pagam às entidades gestoras de fluxos específicos de resíduos, poderá impulsionar o ecodesign com vista à redução do volume das embalagens e emprego de novos materiais e tecnologias. Neste ponto, aliás, a legislação dos resíduos cruza-se necessariamente com a legislação da conceção ecológica dos produtos, também recentemente aprovada na UE.
No caso dos resíduos não urbanos, são geralmente referidos o aproveitamento de componentes dos veículos em fim de vida ou de resíduos da atividade da silvicultura. Mas há outros resíduos que merecem destaque no horizonte de crescimento de oportunidades em matéria de gestão de resíduos, como seja o caso da agricultura, que apresenta hoje níveis ainda altos de abandono ou queima, pelo que o tratamento dos resíduos deverá ser uma prioridade no sentido de minimizar a pegada ambiental ao nível da contaminação dos solos e aquíferos ou da própria conservação da natureza e da biodiversidade, podendo contribuir também para o cumprimento de metas europeias e nacionais nestes domínios.
De mencionar ainda os resíduos de construção e demolição, bem como os resíduos têxteis. Tem sido acentuado a nível europeu que a gestão destes resíduos é uma prioridade. Tal poderá ter um impacto económico significativo se bem acompanhado da aplicação eficiente da regulamentação aplicável, promovendo o sistema de recolha e valorização destes resíduos, nomeadamente para a sua utilização como matéria-prima para novos produtos.
Catarina Pinto Correia |
João Almeida Filipe |