Com o planeta à beira do colapso energético, governos, sociedade civil, empresas e Academia procuram novas formas de produzir e consumir energia. Durante anos negligenciado, o hidrogénio tem dado passos largos para ser a tecnologia do futuro próximo. Neste mundo em transição energética, entre a beira do precipício e o apogeu tecnológico, Portugal pode afirmar-se novamente como potência mundial. Mas com (a devida) cautela.
Durante os últimos anos, e com um movimento de aceleração nos últimos meses, o hidrogénio tem vindo a tornar-se novamente tema de agenda pública. Se há construtores que procuram transformar a indústria do transporte pesado a breve trecho, numa corrida tecnológica que ainda não tem claros vencedores, também os Estados estão a apostar no hidrogénio como forma de se transformarem. Com metas mais verdes, com necessidade de estarem mais energeticamente preparados para o futuro, os governos olham para o potencial de sustentabilidade oferecido pelo hidrogénio e procuram… rentabilidade.
Sines tem sido apontado como o ponto-chave para o processo em Portugal. Desmembrada parte da operação energética nesta cidade da costa litoral do Alentejo, o local está a ser estudado como grande porto de produção e exportação de hidrogénio verde. Mas estará o país a tomar o rumo certo relativamente às diversas opções que podem ser tomadas neste âmbito?
Para responder a estas questões, fomos ouvir Vasco Amorim, professor da UTAD e membro da Associação Portuguesa para a Promoção do Hidrogénio (AP2H2), e Adélio Mendes, professor e investigador da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP), que nos dão duas perspetivas integradas do potencial desta tecnologia, mas também deixam alguns avisos relativamente à necessidade de se olhar para o hidrogénio como uma solução de transição.
Assim, se por um lado a tecnologia não é nova, a sua aplicação ‘mundana’ tem sido um processo acompanhado pela redução do custo (e de utilização) de materiais para a fazer funcionar, nomeadamente a platina, um metal nobre, com muita procura e com pouca produção mundial. “A questão da evolução do fabrico tem sido uma coisa gradual. O que eu disse foi que nos últimos dez anos, talvez um pouco mais, por exemplo, materiais nobres como a platina, estavam a ser utilizados em menor quantidade. Agora conseguimos reduzir cerca de 90% da sua utilização com a mesma capacidade. Isto deve-se provavelmente à utilização de nanopartículas, portanto, outros processos de fabrico, etc”, começa por referir Vasco Amorim. “Eu diria que [a revolução] não será tanto na questão dos materiais. Penso que o próximo passo que vai tornar mais acessível estes equipamentos, nomeadamente as células de combustível, será a produção em massa. Acho que isso será o fator revolucionário, isto porque o preço das fuel cells vai baixar. Por exemplo, as primeiras unidades do Toyota Mirai foram de 3000 por ano. O novo Mirai já tem uma produção estimada de 30 mil unidades, aumentou por um fator de 10. Só isso vai provocar baixas de preços. Quando estivermos em produções de seis dígitos o preço baixará muito”, assevera.
“Penso que o próximo passo que vai tornar mais acessível estes equipamentos, nomeadamente as células de combustível, será a produção em massa”, Vasco Amorim, Professor UTAD
A mesma perspetiva é, em certa medida, partilhada por Adélio Mendes, com o investigador, contudo, a alertar para a escassez desta matéria-prima e a olhar para a solução hidrogénio, como está desenhada, com uma solução de transição. “Uma das questões que se coloca quando se passa tudo para hidrogénio é a seguinte: as células de combustível, neste momento, utilizam platina, que é um recurso escasso. No mundo inteiro produzem-se 400 toneladas anualmente. É um metal muito raro, nobre, que serve para muitas coisas e o esforço que tem sido feito em termos científicos é diminuir a incorporação dessa platina nos sistemas, mas ainda continua a usar bastante. Se em vez de ter células de combustível se conseguir pôr turbinas, a mim parece-me bastante mais avisado. Aí é a tecnologia do costume, tem um pouco mais de titânio… Nas células de combustível é tudo muito bom, mas é no papel. Se nós tivermos uma produção de 80 milhões de carros anualmente com células de combustível, lá se vai a platina toda”, avisa.
Assim, esta poderá ser uma tecnologia de transição, com potencial disruptivo, mas uma aposta que deve ser equilibrada com um continuar de investigação científica e tecnológica. “Se calhar não faz sentido, temos de ter outros paradigmas. Num tempo transitório o hidrogénio é bastante interessante. Para já, diria que o hidrogénio não é um bom vetor energético, já o disse muitas vezes. Não transporta, nem armazena bem. Mas é o único que temos a cobrir uma determinada área da energia, para além de ideias muito promissoras que estão nos laboratórios, mas ainda não estão cá fora. Enquanto não estiverem cá fora, não existem. O hidrogénio, neste momento, não é um bom vetor energético, não armazena bem, não transporta bem, mas é o que provavelmente vai ter de ser usado porque ainda não há muitas alternativas. Logo que haja alternativas o hidrogénio vai reduzir muito a sua penetração. Nos próximos dez anos, eu creio que o hidrogénio vai dominar”, assevera o investigador da FEUP.
Porém, com o mundo a olhar para si mesmo em termos de consumo energético, o hidrogénio pode ser o elemento disruptor da revolução que procuramos fazer neste sentido. “Estamos no olho do furacão. O que se está a fazer de investigação no mundo inteiro é absolutamente fabuloso. Nunca se viu tanta investigação… O financiamento é aceitável, devia ser melhorado, mas vai havendo financiamento para esta área. É uma área que deve exigir muita preocupação”, atira Adélio Mendes, numa lógica também observada de forma semelhante por Vasco Amorim, que nos lembra que a tecnologia já estava pensada, mas só foi aplicada anos depois, na década de 60, pela NASA.
“Esse primeiro salto [utilização da tecnologia pela NASA] foi uma conjugação de esforços, mesmo assim com unidades muito grandes e muito pesadas, mas que foram todas evoluindo. O último salto recente foi a necessidade de descarbonização e também de algumas das propriedades das fuel cells que são muito vantajosas em relação à utilização de baterias de lítio. Nomeadamente pelo peso e velocidade de recarregamento”, explica. “Sendo o hidrogénio um vetor energético como a eletricidade… ela revoluciona na produção, na distribuição e na utilização final. Talvez essas sejam as evoluções mais urgentes”, conclui sobre este tema.
“Logo que haja alternativas o hidrogénio vai reduzir muito a sua penetração. Nos próximos dez anos, eu creio que o hidrogénio vai dominar”, Adélio Mendes, Professor e Investigador FEUP
E Sines, é a solução para um Portugal ‘movido’ a H2?
Com o Porto de Sines a ter um papel cada vez de maior influência no que ao transporte de mercadorias diz respeito, a cidade tem-se transformado paulatinamente para se tornar num dos grandes polos industriais do Sul do país. Esta visão foi partilhada não só por portugueses, mas também por entidades externas que viram potencial na região.
A ideia de tornar Sines o ponto de partida para o domínio do hidrogénio, fazendo de Portugal um player ‘dominante’ neste particular, tem sido acolhida com diferentes sensibilidades. Se por um lado há quem a considere uma boa ideia, muitos lembram que este deve ser um processo de transformação com elevado grau de transparência… isto se for “para dar certo”.
“A ideia inicial foi aproveitar fundos do IPCEI, fundos europeus para parcerias entre vários países e para incidir nas principais apostas da Europa. O hidrogénio está nessa área. Inicialmente, Portugal e os Países Baixos fizeram uma parceria. Os Países Baixos estão a descontinuar a extração de gás natural, porque está associado a pequenos sismos, e estão a tentar sair da utilização do gás e voltarem para o hidrogénio como um substituto. Claro, ali [em Sines] têm parques eólicos e podem produzir a partir de lá e também energia solar, ou seja, fotovoltaica. Os preços dos painéis solares também baixaram imenso nos últimos anos. Portugal, tendo no Sul uma excelente exposição solar, tendo terrenos disponíveis na área de Sines, podendo exportar em navio e fazendo a chamada injeção nos pipelines de gás natural… Somaram estas três coisas mais os fundos do IPCEI e surgiu essa ideia. Não parece uma má ideia, confesso. Parece-me uma ideia bastante razoável”, começa por explicar Vasco Amorim.
“Eu não sou crítico. O que eu disse foi o seguinte. O hidrogénio dá dinheiro se for trabalhado por pessoas competentes e honestas. Eu tenho defendido isso sempre. O projeto de Sines tinha uma componente em que eu não acreditava que era transformar o hidrogénio em hidrogénio líquido e pô-lo num barco. Isso custa 36% do conteúdo energético do próprio hidrogénio. Ou seja, começa com 100 unidades de energia de hidrogénio e quando o congela já está só com 74. Ponto. Não há nada a fazer. Depois, quando está no barco, tem de concorrer com o mesmo hidrogénio que é produzido na Arábia Saudita que tem muito mais facilidades que nós. Se se fizerem uns contratos para uns dois ou três anos, dá resultado. E depois?”, avisa Adélio Mendes. “Portanto, é preciso olhar para Portugal e perceber quais são as nossas mais-valias e o que podemos fazer para apanhar os outros desprevenidos. Foi esse o diagnóstico que foi feito e é isso que está a ser implementado neste momento. Estrategicamente, mesmo os pontos de produção, os pontos de distribuição, está tudo a ser estudado de forma estratégica para dominar o mercado. É uma coisa que está em aberto para ganhar”, acrescenta.
“Eu gostava de deixar claríssimo. Qualquer projeto que se faça de hidrogénio é sustentável se quem estiver à frente foi competente e honesto. Não digo mais nada. O hidrogénio dá dinheiro se for bem feito. Como tudo o resto. Uma das coisas que expliquei na altura foi que a única empresa que atualmente produz hidrogénio por eletrolise, em quantidade industrial, não estava no consórcio. Claro que podemos contratar sempre consultores e suprir essas falhas, mas por um lado parece estranho, não é? É muito importante ter essas empresas a bordo. Têm historial, recursos humanos, conhecimentos, têm tudo, simuladores… Portanto, isso foi outra coisa que referi na altura.”, explica ainda Adélio Mendes.
Porém, ambos os académicos partilham uma visão semelhante: Portugal pode, se fizer as apostas certas e na dimensão adequada, ser um verdadeiro dinamizador deste novo tipo de tecnologia. “Se podemos dar cartas no hidrogénio? Possivelmente, sim, mas com escala. Apesar de o primeiro projeto já ter uma grande escala, vai ser preciso aumentar muito mais para sermos um país exportador”, começa por referir Amorim. “Se colocarmos o hidrogénio num navio, liquefeito, apesar da enorme necessidade de energia que é necessário para o fazer, se estivermos a falar de grandes volumes, ninguém nos impede de levar o navio para qualquer porto que tenha capacidade de receber o hidrogénio. Claro que tudo isto são investimentos grandes, mas se a aposta não for grande o ganho também não pode ser”, lembra ainda.
Corrida de construtores sem pole position à vista
Adaptar anos de produção de motores a combustão implica, como podemos imaginar, uma operação de larga escala. Fazer a transição para fuel cells de hidrogénio poderá ser uma tarefa espinhosa, mas as soluções estão à vista, com vários construtores a firmarem parcerias tecnológicas rumo a um futuro mais verde. “Eu diria que todos gostariam de não estar a fazer o que estão a fazer. Mudar toda a estrutura é um pesadelo, por isso estão a tentar atrasar o mais possível a adoção desta nova tecnologia. Mas a pressão social é muito grande e, portanto, sabem que se não se mexerem [os construtores] algum concorrente se vai mexer e vai ultrapassá-los e pô-los logo no fim da lista. A produção que está excelente em muitos construtores pode desaparecer de um dia para o outro. Portanto, todos têm que manter um conjunto de parcerias. Nos automóveis já existe há muitos anos uma parceria entre a Toyota e a BMW. Na área dos camiões há uma parceria entre a Daimler e a Volva, por exemplo”, começa por referir o professor da UTAD, em jeito de abertura.
“Custa muito dinheiro o desenvolvimento destas novas tecnologias. A este propósito, três tópicos: 1) Durante algum tempo pensou-se em utilizar-se o hidrogénio diretamente num motor de combustão, aproveitando tudo o que já existia do motor de combustão, para diminuir o custo de desenvolvimento. Verificou-se que, por um lado, havia algum desgaste do motor, porque é mais energético o hidrogénio. À semelhança do que os diesel são para os de gasolina, o hidrogénio ainda provocava mais desgaste material. 2) No futuro, o motor elétrico tem muito menos manutenção que um motor a combustão. Tem muito menos peças. Vai ser mais barato na produção e na manutenção. 3) No que diz respeito aos camiões, alguns estão a tentar manter os mesmos chassis e os mesmos espaços disponíveis que existem agora para o motor térmico, substituindo apenas pela fuel cell e todo o equipamento que é necessário no que é o espaço ocupado pelo motor. A Mercedes, com o GLC, tem uma plataforma que admite um motor térmico, um motor elétrico ou fuel cell. Tem chassis que utiliza todo o tipo de motorização. Estão a ser feitas muitas experiências no fabrico e conceção e, num futuro próximo, já deveremos ter um modelo dominante”, explica Vasco Amorim.
Estas são perspetivas que nos podem dar um olhar abreviado sobre tudo o que se está a fazer neste domínio, mas a verdade é que há marcas já com processos muito desenvolvidos neste âmbito. Para se ter uma ideia, a título de exemplo, no início de 2020, foi anunciado que a Hyundai estaria já a usar camiões com célula de combustível para transportar mercadorias de retalhistas na Suíça, sendo que, a breve trecho, o planeamento incluía aumentar a frota para mais de 1.600 camiões e começar também a fazer testes nos Estados Unidos.
Também a Daimler Trucks partilha de uma visão semelhante. Para se ter uma ideia, em maio de 2021, Martin Daum, presidente da Daimler Trucks, afirmou ao Financial Times que, embora os camiões a gasóleo fossem dominar as vendas nos próximos três a quatro anos, o hidrogénio teria o potencial para se tornar no combustível de eleição entre 2027 e 2030, isto numa perspetiva que começa também a ser explorada internamente, com, por exemplo, o anúncio recente do município de Cascais de introdução na sua frota de veículos camarários de autocarros e camiões do lixo a fuel cell de hidrogénio.
Com dois autocarros já prontos a funcionar, o município, através da sua parceria com a Caetano Bus, espera receber novas unidades nos próximos meses, sendo que todos estes veículos serão 100% produzidos em Portugal.
*Artigo publicado na versão impressa da revista LOGÌSTICA&TRANSPORTES HOJE