A Semana Europeia da Mobilidade (SEM) 2023 registou o recorde de participação portuguesa, com 117 municípios. Apesar da adesão, a abordagem atual ao evento tem sido criticada por entidades como a MUBi e grandes municípios como Porto, Sintra e Cascais não dinamizaram atividades. O evento continua a ser um ‘tubo de ensaio’ ou está a começar a tornar-se numa ‘festa da mobilidade’?
A participação portuguesa este ano supera a de 2019, onde tinham participado um total de 109 municípios. A Agência Portuguesa do Ambiente (APA), que assume a responsabilidade técnica e executiva da SEM junto dos municípios, destaca, em resposta à SUSTENTÁVEL, que em 2020 e 2021 “devido à pandemia, a adesão baixou para 78 e 86, respetivamente, tendo vindo a subir desde então”.
“Se considerarmos a média anual de participação, desde 2002, de 72,8 municípios, parece que este incremento reflete a importância crescente da divulgação e sensibilização desta campanha que tem vindo a ser assumida pela APA e pelos municípios”.
A visão da MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta sobre o recorde atingido não é a mesma. “O balanço não é o melhor, dado que basta fazer um périplo pelas cidades portuguesas […] para perceber como estamos a falhar tremendamente nessa mensagem. Embora seja muito positivo que cada vez mais municípios coloquem a mobilidade sustentável na sua agenda, quantidade não é necessariamente qualidade”.
A direção da associação, em entrevista à SUSTENTÁVEL, aponta que “é certo que por todo o país as autarquias procuram cumprir os mínimos olímpicos, com passeios e ações pedagógicas — contudo, esses eventos por norma parecem destinar-se a quem já está convertido. São as pessoas que já usam a bicicleta que são inundadas de mensagens inspiradoras e de desafios para usar um modo de transporte que elas já usam habitualmente”.
A APA vê a questão de outra maneira. “As iniciativas e ações asseguradas por cada participante são as mais diversas e não devem ser comparáveis. Municípios que participam há vários anos consecutivos podem ter, por exemplo, um programa que vem sendo ajustado ao longo das várias experiências e inclusivamente reforçando parcerias que vão estando presentes nas edições futuras e com as quais há já um trabalho continuado de edição em edição. Os municípios que se estreiam dão início a este processo.”
A agência vê a semana como uma alavanca para “refletir sobre os padrões de mobilidade individual e coletiva, explorar alternativas e soluções para uma mobilidade mais sustentável e avaliar as políticas e medidas existentes e a desenvolver, para se atingirem essas metas”. Além disso, permite “pôr em prática algumas dessas medidas, independentemente do trabalho que os municípios asseguram ao longo de todo o ano”.
A semana é uma limitação ou um bom ´tubo de ensaio’?
A APA considera que a SEM é um “excelente ‘tubo de ensaio’ como se tem constatado junto de vários municípios que vêm participando e que aproveitam esta semana para pôr em prática medidas que poderão ser implementadas, ao monitorizar resultados, aferir e auscultar comportamentos, como por exemplo, no caso de ruas a encerrar ao trânsito e dos comboios de bicicletas ou pedibus, na deslocação das crianças para a escola, respetivamente de bicicleta, ou a pé”.
Mas nem todos os municípios consideram o mesmo. Por exemplo, a Câmara Municipal do Porto, que não participou na edição deste ano, em resposta à SUSTENTÁVEL justifica que “adota uma abordagem prudente” em relação à SEM. O executivo esclarece que optou por “por não participar devido à falta de alinhamento com o evento, nomeadamente quanto à adoção de medidas limitadas no espaço e no tempo e que em nada resolvem e melhoram a mobilidade das pessoas”.
No seu entender, “a decisão de implementar um dia sem carros, por exemplo, para voltar ao status quo no dia seguinte, não se coaduna com a abordagem gradual e sustentável que a Cidade procura promover”. Sendo que o município afirma estar comprometido com “implementação de soluções de mobilidade sustentável que sejam graduais e duradouras”.
Esta visão é rejeitada pela APA, que esclarece que a SEM “não restringe, nem tem essa pretensão, a autonomia dos municípios no estabelecimento e desenvolvimento de políticas no âmbito da mobilidade. Apenas permite dar uma maior visibilidade às que são implementadas durante o ano de cada edição”.
A MUBi, quando questionada sobre a legitimidade da justificação da cidade do Porto, afirma que“um dos propósitos da SEM é servir de ‘laboratório de ensaios’ de medidas que depois eventualmente possam ser implementadas de forma permanente — pelo que a justificação da Câmara do Porto, e de outras que tocam pelo mesmo diapasão, é completamente disparatada”.
Em relação à omissão de cidades como o Porto, Cascais e Sintra da SEM, a associação considera mesmo que “não significa que tenham atingido um grau de excelência em termos de mobilidade sustentável”. “Pelo contrário, talvez esses municípios sintam que a mobilidade não é um tema relevante no qual devam investir, o que diz muito da sua visão de políticas públicas. Se é melhor participar fugazmente ou não participar de todo? Bem, a SEM deveria servir pelo menos para fazer uma reflexão. E provavelmente em alguns casos nem essa reflexão é feita”, argumenta.
Prémio da Semana Europeia da Mobilidade e o impacto em Portugal
O Prémio da Semana Europeia da Mobilidade já foi entregue a Portugal quatro vezes: Almada em 2010; Lisboa em 2019; Valongo em 2021 e Braga em 2022. No campo dos finalistas, acrescem ainda Almada e Lisboa por diversas vezes antes de ganharem o galardão; Oliveira do Bairro em 2018; Alfândega da Fé em 2019; e Amadora em 2021.
A APA nota que o prémio “distingue as cidades que melhor realizaram a sua Semana”, analisando a diversidade das ações, a ligação ao tema da edição e à mobilidade sustentável, a abrangência do plano de ação, a comunicação, a qualidade e o impacte ambiental e social.
No entender da entidade coordenadora, as distinções “parecem ser um indicador do bom desenvolvimento e entendimento dos objetivos desta campanha e do compromisso crescente que os municípios assumem para com esta iniciativa”.
A APA aponta que as cidades portuguesas têm investido no projeto como “excelente ferramenta e oportunidade” para consciencializar para a mudança, redesenhar as cidades, aplicar soluções de mobilidade sustentável e inteligente, entre outros. “A qualidade dos contributos […] é notória, contudo, é decisivo um esforço concertado entre poder local, cidadãos/comunidade e empresas”, argumenta.
A MUBi é mais crítica destas distinções, afirmando que deveriam incentivar “estas e outras autarquias portuguesas a fazer mais e melhor para transformar a mobilidade urbana, acompanhando o que numerosas cidades no resto da Europa têm vindo a fazer, como por exemplo diminuir significativamente o espaço dedicado à circulação e estacionamento automóvel, fechar as envolventes das escolas ao tráfego motorizado, baixar o limite de velocidade para 30 km/h ou valores inferiores”. “Infelizmente, nestas autarquias não se tem vislumbrado mudanças dignas de registo, restando-nos ter esperança de que estas distinções sirvam para espevitar vontades políticas.”
Os caminhos para uma melhoria da mobilidade
Os Censos de 2021 mostraram que, nos últimos dez anos, o uso do automóvel aumentou de 61,6% para 66%. Já o aumento de pessoas a usar a bicicleta regularmente para ir para o trabalho ou para a escola foi de 0,4% para 0,5%.
A APA considera que “as iniciativas asseguradas pelos municípios, não somente em Portugal como em outras cidades participantes por toda a Europa, podem servir como um manual de boas práticas. Ou seja, ao dar-se visibilidade às mesmas, estas podem ter um efeito multiplicador e ser implementadas em outras cidades que adaptarão o exemplo”.
Já a MUBi alerta que “pelas nossas contas, a este ritmo a metas nacionais para a mobilidade em bicicleta para 2030 irão demorar mais de 700 anos a serem atingidas. A fazer ‘festas da mobilidade’ uma vez por ano não vamos lá”.
Na opinião da associação, “a melhor forma de reverter esse cenário é existir estratégia para a mobilidade ativa durante todo o ano, e de preferência incluída num Plano Municipal de Mobilidade Sustentável”.
“A alteração de comportamentos necessária não será conseguida apenas com a organização de eventos durante uma semana, na esperança de que esse sobre-entusiasmo vá de repente contagiar as populações a reduzir o uso do automóvel. É um pouco como quem não vai à missa durante todo o ano, mas depois faz uma oferta avultada à Senhora dos Milagres e fica tudo bem, a consciência fica tranquila”, defendem.
Além disso, notam que as autarquias que, por exemplo, não apostam nos transportes públicos “não podem esperar que uma ‘semana da mobilidade em esteróides’ com eventos em ambiente controlado, ou até desvirtuado, resulte efetivamente em prol da mobilidade ativa”.